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― Eu sabia que você teria coragem suficiente pra enfrentar aqueles babacas, Valen. Mas quando você respondeu que Sister Rosetta Tharper foi a grande influenciadora de Elvis Presley, eu vi sangue nos olhos daqueles panacas! Toma mais um gole. - Cadu passa a garrafa pra mim.

― Ela não foi só isso, Cadu. Ela foi a mãe do rock. A mãe do rock é uma mulher preta. ― viro mais um gole mesmo sentindo meus pés caminharem sem um rumo certo comandado por mim. 

Estamos tentando chegar em casa.

― Pô, por que você não terminou de trucidar aqueles caras com essa máxima? ― ele pega a garrafa da minha mão e vira outra dose.

Eu sei que estou parecendo ter muito menos idade do que tenho com essa bermuda tactel obrigatória para as aulas de educação física, mas convenhamos que após algumas doses de wisky é possível se sentir uma garota incrivelmente irresistível mesmo assim.

― Acho que a gente não deve aparecer em casa desse jeito, Valen. ― ele me alerta sobre minha embriaguez enquanto segura um dos meus braços, impedindo que eu leve um tombo na rua e passe pelo terceiro vexame na frente dele em menos de vinte e quatro horas.

― Você quer dizer desse jeito como? Bêbados? 

Na verdade estou me sentindo levemente dançante, mas não exatamente embriagada como a mãe dele costuma ficar.

― Acredito que você nunca tenha bebido nada forte antes, Valen... Não posso te deixar em casa assim... Eu me sinto ótimo, mas a dona Clarice pode acabar com a possibilidade de eu te ver novamente se ela se deparar com a gente juntos cambaleando. 

Faço uma careta e reviro os olhos.

Sinto meus batimentos saltarem dentro do peito ao ouvir o Cadu dizer a palavra "novamente". Ele quer me ver novamente, como se já não estivéssemos fadados a nos vermos sempre na escola e pela redondeza? Será que ele quis dizer algo a mais com esse "novamente"? Dizer, talvez, que quisesse estar comigo desse mesmo modo que agora, só nós dois, de novo? Eu não posso estar totalmente apaixonada por esse cara de ontem pra hoje! Espano esses pensamentos absurdos da minha cabeça. Tento me concentrar em dar um passo de cada vez em linha reta e não demonstrar como me sinto tonta em todos os sentidos. Em todos os sentidos.

Sei que ele está certo. Minha mãe não está preparada para que sua filha cometa algumas loucuras que todo adolescente comete. Sei que terei de poupar dona Clarice. Então não tenho saída sem ser enviar uma mensagem pra ela mentindo que estou realizando o trabalho de Geografia na casa da Babi até que recupere a sobriedade. Comento com o Cadu a ideia que tive, e ele me faz a segunda proposta irrecusável do dia:

― Que tal então a gente ficar lá em casa até essa brisa passar e você ser capaz de escalar o Everest sem que eu precise segurar você pelo braço, hein? - ele faz a pergunta enquanto encosta seus dedos levemente no dorso da minha mão.

Eu quero muito aceitar o plano, mas mostro os dentes com certa impetuosidade e reviro os olhos desaprovando a piada que ele fez.

Meio que me sinto péssima e feliz ao mesmo tempo. Sim, é possível ter sentimentos opostos ao lado do Cadu. Eu odeio estar um pouco bêbada ao lado dele, mas adoro poder estar bêbada o suficiente para que ele fique comigo até eu recuperar minha sensatez.

― Acho que não é uma boa ideia, Cadu...

Ele leva um cigarro à boca e o acende. Dá um trago e me segura pelo braço. Eu me sinto derreter inteira por dentro. Estamos parados a dois quarteirões do prédio em que moramos. Caso eu aceite a proposta, tenho de dar sorte da minha mãe não me ver entrar em seu apartamento.

― Você é sempre marrenta assim? - ele me pergunta em meio a outra tragada, seu olhar se estreita de um jeito investigativo. ― Eu só quero que você fique bem, Valen. Não sou nenhum estranho que vai te sequestrar, apesar de eu... - ele pausa a frase e lança um olhar intenso sobre mim.

― Apesar de você... o quê, Cadu? - fico apreensiva para o término da frase.

― Apesar de eu querer te mostrar uma coisa... - ele segura minha mão, eu estremeço.

― O quê? - enquanto pergunto, ele continua puxando minha mão e caminhando rumo ao nosso prédio.

― Você tem medo de altura?

― Quando estou sóbria, com certeza. Mas como estou bêbada agora, acho que não.

― Ótimo, marrenta. Então vem!

Passamos pela portaria e pelos corredores do prédio. Porém, antes de pegarmos o elevador e chegarmos a seu apartamento, Cadu resolve pegar o rumo das escadas. Durante o caminho, faço muitas caras e bocas e perguntas às quais ele não responde nenhuma. Ele somente me conduz. E eu somente vou. Vou para um futuro no qual estou deixando meus catorze anos para sempre. Quando me dou conta, já estamos no último andar do prédio, mas Cadu continua subindo. Mais cinco degraus e temos de agachar para passarmos por uma pequena porta. Do outro lado está a cidade inteira. Estamos sobre a laje do edifício em que moramos, a tarde finda por detrás da floresta cinza de pedras da cidade grande: São Paulo, tão pulsante como meu corpo inteiro neste momento.

― O que você achou? - ele ainda segura uma de minhas mãos.

― Simplesmente lindo, Cadu...Eu nunca estive aqui, mesmo morando há anos nesse prédio!

― Eu sei... Você e a Bárbara gostam daquele muro que rodeia o condomínio. 

Ele sabia bastante da gente, e isso em parte me surpreendia.

Ficamos um tempo em silêncio, apenas observando o horizonte sentados lado a lado no concreto cinza e gelado. O bairro da Consolação é uma mistura de prédios antigos e de novas sacadas gourmet. Muitos veículos, luzes, lojas, transeuntes. Vida. Grana, pobreza, drogas, furtos, resistências. Algumas ocupações. Trabalho, graffites, o Cine Belas Artes, finais felizes e infelizes. Eu e o Cadu.

Ele tira seu violão da capa de couro em suas costas. Enquanto isso, mando mensagem para dona Clarice e respondo rapidamente às inúmeras mensagens da Babi. Procuro ser breve: "Estou no céu, estou um pouco bêbada também, estou um pouco bêbada no céu". E desligo o celular.

Quando olho para o lado, ele está dedilhando uma música no violão.

"Nessa selva
A gente se acostuma a muito pouco
A gente fica achando que é normal
Entrar na fila, comprar ingresso, pra levar porrada

No meio de tudo, você!
Me salva da selva, me salva da selva!
No meio de tudo, você!"

Eu juro que não queria achar que a selva era a paisagem da cidade à nossa frente. Eu juro que não queria achar que eu seria aquela no meio de tudo. Mas a essa altura, eu já tinha certeza de que era a mim que ele se dirigia. No meio de tudo, nós dois na cobertura de um prédio, seu cigarro, meu cabelo longo e ondulado caindo pelas minhas costas, seus olhos entre os meus e as luzes da cidade, sua perna encostando na minha de vez em quando, seus olhos agora mirando meus lábios, seu sorriso de canto, minha pele morena, sua tatuagem de fênix cobrindo-lhe o braço. Eu e ele. No meio de tudo.

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 Capítulo fofo!
🥰

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Vou tentar postar outro capítulo ainda esta semana.

Sempre fomos nósOnde histórias criam vida. Descubra agora