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Kyan

O som dos tiros não é mais algo que me faz tremer. Se acostuma, sabe? Quando você vive no morro, o barulho de bala é como o canto dos pássaros para quem tá lá fora. Mas hoje é diferente. Hoje, o som é mais alto, mais próximo. Dá pra sentir o peso no ar, como se tudo fosse desabar em cima da gente.

Eu tô no meio disso. E dessa vez não é só pelo morro. É por ela. Nathalia.

O rádio chia na minha cintura, a voz de Coringa entra firme, mas calma. O desgraçado sempre tem esse tom, como se o caos ao redor fosse só mais um dia no escritório.

-Eles tão cercando pela leste. Querem te prender no canto, Kyan.

Prender? Eles que tão presos aqui comigo.

- Deixa eles virem. - Respondo, a mão firme no fuzil que Coringa acabou de me trazer.

Correr pelos becos, pular os muros, ver o morro de cima, cada som e cada movimento. Tudo tá gravado na minha cabeça. Eu conheço essa área como conheço minhas cicatrizes. Cada esquina, cada viela. E agora, isso tudo é o campo de batalha.

O pior de tudo é que tem crianças no meio dessa merda. Quando ouvi o som das balas lá de cima, sabia que eles tavam mexendo comigo de uma forma que não iam sair ilesos. Invadir a escolinha? Mexer com inocente? Eles assinaram a própria sentença.

Meu peito arde. Não é o peso do colete, nem o cansaço que já tá batendo. É outra coisa. Raiva. Ódio. Ver Nathalia correndo pelos corredores, tentando salvar as crianças, só me deu mais força. Ela não entende o perigo que é estar aqui fora. Ela não entende que, no meio dessa guerra, eu tô lutando, por todos nós.

Abaixei atrás de uma parede quando ouvi passos. Não é só o som das botas, é o ranger do chão que me avisa. Atiradores. Eu consigo sentir o cheiro da pólvora, ainda fresco no ar. Quando o primeiro passo chega perto, levanto a arma e dou o primeiro tiro. O corpo cai com um baque surdo.

- Mais um. - Murmuro pra mim mesmo, a voz baixa. Não tem tempo pra celebração, não tem espaço pra hesitação.

Coringa chega ao meu lado, arma em punho, os olhos frios como sempre. O que eu admiro nele é isso. Não tem medo, só lógica. Ele enxerga a guerra como um quebra-cabeça e, pra ele, os inimigos são só peças que precisam ser removidas.

- Vamos até o ponto alto. - Ele diz, a voz calma demais pra situação.

Assinto. De onde estamos, dá pra ter uma visão ampla do que tá acontecendo. Eles acham que têm o controle, mas o morro é meu. E ninguém vai tirar isso de mim.

A cada passo, a adrenalina cresce, mas minha mente tá focada. Tem um plano. Sempre tem.

Ouço mais tiros, mas eles não me atingem. Eu tô no meio do caos, mas é como se tudo ao redor fosse uma dança que eu já conheço. Vejo os inimigos se movendo como peças no tabuleiro. Aquele que acha que pode se esconder atrás de uma pilha de lixo. O outro que tenta passar correndo pela rua. Todos eles caem.

Mas a verdade é que, por mais que eu esteja lutando, tem algo maior aqui. Algo que vai além dos tiros e das mortes.

Eu tô lutando por controle. Pelo morro. Pela minha vida.

Aquela cena dos olhos da Nathalia cheios de lágrimas me desarma de um jeito que nenhuma bala jamais vai fazer. Eu sei que ela quer sair disso, quer me salvar de mim mesmo. Mas eu não posso. Eu sou o morro, sou parte dessa guerra. E a guerra, bem, ela não termina até o último homem cair.

Meu rádio chia de novo, a voz de um vapor dessa vez, rápida, urgente. Eles tão avançando rápido demais.

- Kw, tem mais vindo do norte. Preciso de reforço aqui.

Porra. As linhas estão esticando, e isso me diz que essa invasão foi planejada nos mínimos detalhes. Quem quer que tenha orquestrado isso, sabia onde atacar, sabia onde me ferir.

- Aguenta aí. - Respondo, mas sei que as coisas estão começando a sair do controle.

Coringa me olha. Ele não precisa dizer nada. Ele sabe o que eu tô pensando.

- Felipe tá nisso, né? - Pergunto, a voz saindo seca.

Coringa não responde de imediato, só aperta o fuzil nas mãos e balança a cabeça. Eu sabia.

Felipe sempre foi um problema, mas agora ele virou uma ameaça real. Um traidor. Ele conhece minhas fraquezas, e por isso, ele tá jogando sujo. O fato de ele mexer com Nathalia só faz meu sangue ferver mais.

Conheço Felipe a um tempo. Ele sempre estava envolvido no morro, ajudava nos armamentos e levava drogas para outros policiais. Agora que ele acha que conseguiu escapar, ele quer guerra para que ninguém saiba do seu passado obscuro.

-Se eu encontrar com ele hoje... - Começo, mas deixo a frase morrer. Não vai ter "se". Eu vou encontrar. E ele vai pagar.

Coringa e eu seguimos pelo caminho, o som da guerra ficando mais distante conforme subimos. Lá de cima, dá pra ver a destruição. Os corpos caídos, o sangue nas ruas. Esse morro já viu muita coisa, mas hoje vai ser lembrado.

Um estalo me traz de volta. Levanto o fuzil de novo, a mão firme. Meus dedos já sabem o que fazer antes mesmo de eu pensar. O inimigo avança pelas minhas costas, a faca é lançada no meu rosto, fazendo minha bocheca sangrar.

Me viro atentamente, atiro na sua cabeça, o som do corpo batendo no chão é abafado pelos gritos e tiros ao redor.

Sorrio de lado, mais um deles fora do caminho. Se eles acham que vão sair daqui vivos, tão muito enganados.

Mas enquanto a guerra continua lá fora, aqui dentro, o verdadeiro campo de batalha é outro. E essa batalha, com Nathalia no meio, eu ainda não sei se posso vencer.

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