A discussão

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Hualca me abraçou e me disse que ele pensou que havia me perdido para sempre. Meu irmão estava preocupado e me prometeu fazer o possível e o impossível para não me deixar partir. Ele só tinha a mim e daquele dia em diante eu me lembraria disso em todas as ocasiões nas quais eu estivesse quase morrendo a fim de obter mais força para lutar por minha vida.

Miya permaneceu quieta e assustada: o medo vazava de seus olhos e estes gritavam o que a sua boca silenciou. Naquele instante, a irmã de Tader era apenas uma criança assustada. Então, falei para ela que eu não corria perigo e tentei convencê-la de que tudo ficaria bem. Ela me olhou e disse que sou um sujeito de sorte por ter escapado das garras da morte. Não desmenti Miya, pois a ruiva não poderia ter sido mais sincera.

Tader me contou que, provavelmente, eu havia sido atacado por Niana e concordei com ele. Meu mais novo companheiro de viagem estava muito apreensivo e parecia estar arrasado. Vendo-o assim, pedi-lhe para não se preocupar tanto comigo. Entretanto, ele me segredou que seu maior temor era de perder mais alguém para a morte e ele riu forçosamente.

Em seguida, o irmão de Miya afirmou ser um incompetente, porque os filhos de Aima aprendem a conviver mais com a morte do que com a vida e ele ainda sentia tinha horror à possibilidade de perder quem ele ama. Compreendi que Tader não deixou a seca de sua terra dominá-lo e queimar sua vida, ele era um oásis e se sentia mal por ser assim.

Ao ouvir tais confidências de meu companheiro de viagem, recordei-me das palavras da Niana, ou de quem pensei ser Niana: era difícil sobreviver após perder alguém amado. Se Tader temia me perder , ele se importava muito comigo de algum modo.

O filho de Aima me era mais amigo do que Malotl foi e senti uma grande felicidade por ter conhecido Tader. Imediatamente, uma gratidão me invadiu e tive muita certeza de que viver valia a pena. Realmente, eu gostaria que Niana também tivesse um Tader em sua vida. Talvez as trevas nas quais ela se atirou fossem filhas de uma vida cheia de carências.

Agradeci o irmão de Miya por se importar comigo e ele me falou que eu nem deveria ser grato por isso. Porquanto, para ele se importar é fácil, enquanto ignorar é difícil. Só ignora quem tem motivos para isso, porque fingir-se não ouvir uma realidade que grita demanda muito esforço para enganar os outros e a si mesmo. Tader afirmou que o indiferente age dessa forma por se sentir desconfortável demais com algo e não possuir a coragem necessária para tentar mudar o que desagrada.

As palavras de Tader foram belas e eu adoraria poder acreditar nelas. Infelizmente, não consegui compartilhar da mesma crença que meu novo amigo em momento algum. Se tanta gente consegue ser indiferente, a indiferença não deve ser difícil, pois se o fosse poucos se atreveriam a ser apáticos. No entanto, guardei essas observações para mim.

Depois do que Tader disse o silêncio reinou e as palavras dele ecoaram por tudo como se fosse cânticos assombrados. Olhávamos uns para os outros esperando alguém ter coragem de dizer algo e isso realmente ocorreu. Burdealdea quebrou o silêncio com dizeres revoltados, preocupados e um tanto magoados.

Enchendo-se de uma ira insuspeita Burdealdea me disse que eu deveria amar o perigo e o desconhecido, porque eu vivia flertando com a morte. Não a condenei por sua raiva, ela estava demonstrando que se importava comigo e eu não poderia julgá-la por ela ter medo de me perder. Provavelmente, a garota dos olhos celestes me considerava muito e quiçá eu lhe fosse tão importante quanto ela era para mim. Continuei quieto, visto que eu não sabia quais palavras eu deveria lhe dizer.

Diante de meu silêncio, Burdealdea desfez-se em lágrimas acusando-me de não ter interesse pelos sentimentos dela em relação a mim e que só não me abandonava por gratidão e por eu ter sido o melhor amigo que ela tivera em toda a sua vida. De acordo com o raciocínio dela, se me importasse eu não me colocaria diante de tantos riscos.

Minha amiga acreditava que eu desprezava minha vida e apesar disso ela me queria vivo mesmo quando eu agia como se ignorasse esse fato, desconsiderando-a totalmente. Então, contei-lhe que não era bem assim, eu a admirava. Todavia, eu não ignorava a necessidade de me arriscar para salvar os meus.

Logo depois, arrependi-me de ter dito as palavras que acabara de pronunciar, mas de nada isso adiantou: a tempestade já estava formava e cairia em toda a sua fúria sobre mim. Não havia mais nada a fazer no intuito de evitar o conflito com Burdealdea. A jovem parou de chorar e me atacou com palavras afiadas: ela não queria ser salva, ela só desejava ter um amigo.

Tentei ainda me esquivar da batalha, mas Burdealdea escancarava que ela não desejava me perder. Nesse momento, entristecido entendi que ela sentia muito afeto por mim e jamais eu o corresponderia à altura, pois ela não era tão única em minha vida quanto eu o era na dela. De certa forma, ela expunha minhas fraquezas de homem irracional e louco na frente de todos ao me bombardear com acusações de todo o tipo e tanto fez que conseguiu que eu perdesse minha paciência.

Enfureci-me e fiquei cego de raiva, por esse motivo ofendi Burdealdea chamando-lhe de leviana por amar tanto um rapaz que mal acabara de chegar à sua vida. Inesperadamente, ela não se intimidou e retrucou que se ela era imprudente, eu o era muito mais. De acordo com a filha do Lua, aparentemente eu apreciava a companhia de Niana com os seus pesadelos e isso me levava a sempre a procurar a deusa maléfica. Eu simplesmente ignorava que a serva das trevas me detestava e se possível faria mal a mim e a quem eu amo. Burdealdea falou que eu deveria estar sob algum encanto, senti-me encurralado e quase defendi Niana ou quem quer que fosse na frente de todos.

No fundo, eu sabia que a entidade dos pesadelos não era má, ela apenas estava um pouco quebrada e era possível consertá-la. Entretanto, contive-me e afirmei que a única enfeitiçada ali era Burdealdea, porque ela estava dominada por um ciúme injustificável.

Burdealdea se calou e ficou perplexa. Aproveitando a chance, decidi dizer à beldade que eu nutria por ela uma grande amizade, mas ela não poderia se colocar como a principal prioridade da minha vida. Além disso, eu lhe avisei: não a amava mais do que todos os meus entes queridos juntos, nunca deixaria de defendê-los para agradá-la e jamais faria serenatas sinceras para ela apesar de sua beleza divina. Eu não queria mentir para ela da mesma forma que iludi Yaiza, pois eu a amava e a respeitava, mas não desistiria de tudo por ela.

Burdealdea não foi capaz de me fazer arder de paixão e eu almejava um romance enlouquecido tragando minha existência. Desgraçadamente, a calma dos olhos de safira não me inquietava o suficiente ao ponto de me aprisionar neles e tive de explicar isso para a jovem ingênua.

Ainda falei que se Burdealdea não me aceitava assim, eu não mudaria e se por isso desejasse se afastar de mim, ela poderia fazê-lo . Eu não a impediria de me deixar para trás, porque eu desejava vê-la livre, afinal amor também é liberdade. Indubitavelmente, ela estava sofrendo por eu lhe decepcionar e eu já estava me considerando um monstro por causar tanta dor em uma pessoa tão boa.

Porém, ao ouvir minhas palavras, Burdealdea pôs-se a chorar, Miya a abraçou, Tader me olhou com reprovação, Hualca me repreendeu e me senti o pior ser existente.

Meu irmão afirmou que fui muito severo com Burdealdea. Em minha defesa, falei para Hualca que eu preferia ser ríspido naquele momento a me tornar um ilusionista e machucá-la mais ainda quando a desilusão viesse. Após sonhar com acontecimentos muito distantes da realidade, acabei ganhando o seguinte aprendizado: a decepção sempre é impiedosa.

Hualca continuou bravo comigo e insistiu em dizer que eu estava errado mesmo após minhas justificativas. Não o retruquei por saber que ele estava certo.

Apesar de eu ter sido verdadeiro com Burdealdea , fui muito cruel com ela e eu deveria lhe pedir perdão por tê-la ofendido e por destroçar o seu coração. Ela poderia me odiar por ter derrotado o seu irmão, no entanto ela escolheu me amar. Também fui apaixonado por ela, mas foi por pouco tempo: foi um infinito que durou pouco e logo percebi que eu não conseguiria amá-la com a perfeição merecida por ela. Eu não era digno da princesa dos ventos tal qual errante que sou, porém isso não me garantia o direito de magoá-la e de ser ingrato.

Aceitei que Hualca estava certo e fui me desculpar com Burdealdea, esta ouviu minhas palavras em silêncio e nada respondeu. A ausência de palavras foi o pior que poderia ter ocorrido, porque não havia mais sons para me fazer esquecer minha mente gritando comigo e me acusando: nada apagaria o que eu disse e feri uma alma muito delicada. Pela primeira vez na vida, temi jamais ser perdoado por meus erros.

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