O ataque do servo do mal

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Após rezarmos, eu e meu irmão voltamos para nossas barracas e notamos uma mobilização incomum no acampamento. Fomos até onde todos se juntavam e vimos Miya convulsionando. Tader nos avistou e correu em nossa direção, ele vertia muitas lágrimas e tinha medo de perdê-la.

O gigante de Aima confessou que sua mãe morreu de uma forma semelhante: a mulher que lhe deu a vida foi morta pela praga do deserto. Essa doença era impiedosa e geralmente matava em menos de três meses. Os enfermos vertiam sangue esporadicamente e sofriam até a morte, era uma enfermidade sorrateira e ninguém sabia de onde ela vinha.

Hualca abraçou o irmão de sua amada. Os dois choravam. No entanto, não derrubei lágrima alguma. Eu estava inatingível a tudo. Nada me alcançava e o desespero não me contaminava. Só me restava observar aquela dantesca cena.

Repentinamente, vi um vulto perto de Miya e tive consciência de que a garota ruiva não estava enferma. Ela estava sendo atacada e se ninguém intervisse a entidade que a atacava a arrastaria para o túmulo. Lembrei-me que os fantasmas, as entidades, os anjos e os monstros não perturbam os vivos sem motivos.

Entretanto, a menina amada por meu irmão era jovem demais para ter feito algo tão grave ao ponto de justificar uma ação tão maléfica que a vitimava. Recordei-me do demônio que lutou contra mim, meu reencontro com ele poderia não ter sido apenas um sonho e ele desejava se vingar da irmã de Miya, já que foi incapaz de me derrotar. O monstro poderia estar usando uma inocente para me atingir, ele queria que eu pagasse pelo o que fiz... Afinal, como um simples humano ousou derrotá-lo?

Resolvi agir rápido e consegui chegar perto de Miya. Naquele momento, invoquei o poder ancestral de Lisa no intuito de conjurar a lendária luz dos imortais, isso fez o servo do deus do mal se separar definitivamente da agoniante e todos viram com clareza a figura perturbada do monstro: escamas vermelhas, forma humanoide, olhos de cobra, pé de cabra e dentes afiados.

O demônio bradava por vingança e disse que eu não poderia salvar Miya de sua ira. Expliquei-lhe que eu não desistiria dos meus amigos e se ele tivesse algum juízo era melhor voltar de onde veio. Falei para o monstro que eu não permitiria que ele continuasse ferindo inocentes e ao ouvir isso ele foi embora revoltado e praguejando contra tudo. Por fim, também tive outra certeza: na noite anterior eu havia tido contato com um dos temidos servos do deus do mal.

Logo após o afastamento da assombração, Miya parou de convulsionar e começou a clamar por socorro. A menina dizia que estava sendo atacada por uma horrível entidade sedenta de revanche e ameaçava levar a ruiva ao mundo dos mortos se isso fosse necessário para me ferir.

Abracei a filha caçula de Nak e informei à amada de meu irmão que seu algoz já havia se afastado. A pequena me banhava em suas lágrimas e me permiti chorar junto dela, porque compreendi que tempos sombrios se aproximavam da família de Tader... Eles estavam próximos demais de mim. Porquanto, mesmo que aquele monstro não voltasse a assombrar Miya e seu irmão, havia a guerra civil e os outros campeões representando as outras divindades em seus jogos mortais.

Gaia e Malotl estavam fortemente ligados. Infelizmente, eles costuraram suas histórias com sangue derramado e tinham um tipo de relação incendiária que sempre termina por consumir a todos os envolvidos. Eu previa que o destino da viúva homicida seria trágico e ela não escaparia da cova que cavou com as próprias mãos, pois o ressentido esposo lhe devotaria a vingança pelo amor que não foi vivido. Eu não tinha dúvidas: o governante afogado estava em luto por eles e suas flores eram juramentos de revanche. Certamente, ele não queria deixá-la e as lembranças dele talvez a assombrassem. Eu assistia a esse romance infeliz com muito pesar e desejava poder salvá-los de si mesmos.

Quando terminei de libertar Miya do jugo do servo do mal, busquei Burdealdea com o olhar e não a encontrei. Eu desejava pedir ajuda à princesa dos ventos, visto que ela já conviveu com os desvarios malignos de seu irmão e por isso deveria entender os espíritos malignos melhor do que eu.

Provavelmente, Burdealdea tinha um entendimento mais vasto sobre o mundo dos mortos do que a maioria das pessoas, porque ela era uma jovem dotada de muita fé, era uma semideusa e era irmã de um poderoso mago sombrio.

Acredito que a grande maioria dos feiticeiros das trevas altera algo importante na existência de quem tem o azar de cruzar seu caminho com eles. No caso da beldade dos olhos dos olhos azuis, o irmão dela não conseguiu matá-la , mas os traumas resultantes de todas as atrocidades cometidas por ele simplesmente não deveriam tê-la deixado.

Estranhei que a filha do Lua não estivesse perto de Miya naquele momento tão difícil, porque Burdealdea não era o tipo de pessoa que abandonava os outros. Essa estranha ausência era inacreditável e me atordoava. Então, procurei a donzela das cordilheiras pelo acampamento. Encontrei Burdealdea inconsciente e Yaiza a vigiava.

Ao ver a princesa dos ventos desmaiada, tive muito medo de perdê-la, pois temi que ela fosse levada de nós por um sono profundo do qual talvez ela jamais despertasse ou que o monstro estivesse tentando acabar com ela. Desatei a chamar Burdealdea na esperança de que ela acordasse. No entanto, ela permaneceu tal qual morta e desatei a chorar. Nesse instante, a dama de fogo me abraçou com força e pediu para não me preocupar com a jovem dos olhos de safira.

Minha ex-namorada me contou que a filha da região mais esquecida pela humanidade desmaiou ao ver Miya convulsionando e logo despertaria.

Eu tive vontade de gritar que poderíamos perder a filha do Lua, porém me contive. Havia tanta certeza no olhar de Yaiza que não ousei contrariá-la. Na realidade, tive a impressão de que a líder dos rebeldes velaria por Burdealdea pela eternidade e ainda acreditaria em seu despertar.

Felizmente, a menina-sol estava certa e pouco tempo depois a princesa dos ventos recuperou a consciência.

Imediatamente, libertei-me dos braços de minha ex-namorada e abracei minha amiga recém-desperta de modo a nunca mais soltá-la. Naquele momento, chorei como se eu estivesse me reencontrando com uma pessoa muito querida que eu não via há muito tempo, pois senti saudades da garota dos diáfanos olhos azuis durante o tempo em que ela esteve inconsciente. Naquele instante, percebi que o quão importante Burdealdea era para mim... Talvez eu tenha demorado demais para perceber que a minha vida perdia um pouco do seu sentido sem a princesa dos ventos, a minha princesa se ela ainda o quisesse... Se ela me preferisse ao invés de Yaiza.

Quando Burdealdea conseguiu se soltar, eu confessei-lhe que temi sua morte. Após ouvir minhas preocupações, a jovem recém-desperta desatou a chorar. Pedi-lhe para não se preocupar com meu medo, porque ele era meu e não deveria feri-la. A filha do Lua me contou que eu jamais a perderia da mesma forma que ela nunca deixaria de acreditar no lado bom de todas as pessoas, porque a divindade lunar lhe concedeu a eternidade.

Abracei a filha da terra dos esquecidos e lhe pedi para jamais desistir do amor apesar das decepções e das perdas, quase confessei os meus sentimentos por ela, mas fui covarde... De novo. Pior, eu menti.

Pedi desculpas à Burdealdea por não conseguir lhe devotar tanto afeto quanto ela merecia e ela disse que me perdoava por saber que eu gostava dela o suficiente para não esquecê-la. Fiquei quieto diante dela, porque eu sabia que suas palavras não poderiam ser mais verdadeiras.

Após me recompor de mais uma mentira, decidi fazer algo certo, dizer alguma verdade para me redimir. Roguei perdão à Yaiza por não ter correspondido seu amor e por iludi-la comum namoro bonito e vazio. Minha antiga namorada disse que eu não precisava pedir-lhe desculpas, pois só se pede perdão quando alguém é prejudicado e fui eu quem teve a maior perda: perdi tempo enganando-a. A líder da rebelião estava cruelmente certa.

Fiquei desconcertado com a dama das chamas e depois lhe perguntei quando partiríamos rumo a Danji. Yaiza me respondeu que seria em breve e ela não mentiu. Uma hora depois, todos começaram a marchar em direção à capital. Nesta viagem fiquei perto de Tader, de Miya e de Hualca, eles me perguntaram se Burdealdea acordou do desmaio e respondi-lhes que ela estava desperta e bem.

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