O senhor do deserto

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Quando acordei avistei as mulheres que mais amei nessa vida: Niara, Tla e Pemi. Elas estavam preocupadas comigo, cercavam-me de cuidados e todas queriam me abraçar. Incrédulo, ameacei perder a consciência novamente, porque eu sabia que se tratava de um sonho. No entanto, Tla com sua voz rouca chamou-me novamente. Minha irmã estava muito mais parecida com minha mãe, porém o porte de minha irmã era diferente: Tla tinha a mesma grandeza das imortais matronas reverenciadas pelos filhos de Danji.

As grandes matriarcas de minha cidade natal foram mulheres guerreiras que lutaram até a morte para defender seus filhos e seu povo. Sabe-se que a maior parte delas eram viúvas, bruxas e pobres, mas não se renderam ao domínio de Sana e batalharam pela liberdade mesmo não possuindo dinheiro nem exército. Elas só eram donas de seus corpos e de sua fé.

O fim dessas mulheres corajosas foi o mesmo de todos aqueles que se levantaram contra o Império de Sana, foram executadas. Entretanto, não conseguiram matar seus legados e elas se tornaram eternas intercessoras do seu povo sofrido perante os deuses. Inúmeras vezes rezei escondido para elas pedindo-lhes o coração de Pemi e a liberdade dos meus. Não fui atendido em todos meus desejos e sou grato a elas por esse motivo. Porquanto, se eu tivesse meu primeiro amor em meus braços, eu não poderia me dedicar à dona de meus caminhos: Niara.

Enfim, Tla estava bem, abraçou-me ternamente e lavou-me com suas lágrimas saudosas. A senhora dos terremotos me contou que sua misteriosa mestra era a deusa da morte e esta estava treinando minha irmã a fim de vencer o jogo dos deuses. Com um olhar grato, Tla agradeceu sua professora por tê-la salvado de uma vida encarcerada de inúmeras maneiras. No entanto, Niara a interrompeu afirmando que sua discípula a salvou da morte na qual havia se entregado em eternidade: a morte da esperança.

Em lágrimas, a imponente deusa me contou qual era a sensação de perder a esperança. Minha amada me contou que a falta de esperança libertava o instinto de destruição das amarras da moral, da sobrevivência e da razão. Ou seja, ser sem esperança consistia em trazer à tona o caos adormecido em nosso inconsciente e semear tal miséria para si mesmo, inundando todos com o desespero que tragou sua alma antes de saltar aos precipícios sombrios contidos em seu olhar sem brilho.

Tla abraçou maternalmente aquela mulher que estava tentando se reerguer do abismo da descrença nos deuses e na humanidade. Nesse momento, percebi que minha irmã amava Niara tal qual uma mãe amaria sua filha perdida e por isso ela seria lembrada pela eternidade como a maior matrona de todas: Tla, a mãe dos condenados e dos aflitos.

Ajoelhei-me diante da minha irmã em sinal de respeito. Entretanto, ela pediu para eu me levantar. De imediato, acatei à sua ordem e a abracei com todas minhas forças. Até tentei dizer à minha irmã o quanto eu a amava e sentia sua falta, mas a saudade roubou-me as palavras e só restou-me o silêncio.

No entanto, esse momento findou e uma súbita nostalgia de Pemi me invadiu. Todavia, não era exatamente de minha primeira amada de quem eu sentia falta. Na realidade, a menina-sombra era uma grande e bela ausência e esses vazios presentes em seus olhos me faziam saudoso, pois eles me recordavam de nossa história de amor que jamais se concretizou. Enfim, boa parte do que me ligava a ela consistia em um punhado de lembranças que nunca ocorreram.

Surpreendentemente, a gélida Pemi veio ao meu encontro e me abraçou fortemente. Não consegui reagir e permaneci parado nos braços daquela que já foi tão importante para mim. Repentinamente, a gratidão se apossou de mim e naquele momento pude compreender tudo: a vida colocou a garota de Sana em meu caminho com o intuito de preparar minha alma para a missão da qual estava incumbida, porque eu deveria aprender a amar arduamente para conseguir mudar o mundo.

Após o abraço, a menina-sombra me agradeceu por eu ter salvado sua família de uma execução, contou-me que foi a escolhida do deus da guerra e ela faleceu em uma batalha contra os monstros comandados por Malotl, Pemi me pediu para vencer o jogo dos deuses em seu nome para evitar que o mundo mergulhe em uma tirania maléfica e sustentada pela dor. Fiquei com pena dela... Tão jovem, tão bela e tão quieta, uma sombra fugaz em meio à própria vida.

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