No fim, o amor é tudo o que temos

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Miya, que permanecera quieta até o momento, interviu e pediu ao irmão para ele aceitar a proposta de meu irmão. Tader ainda tentou argumentar enumerando todos os perigos desnecessários pelos quais eles passariam unindo-se a nós. No entanto, a irmã dele manteve resoluta e lhe escancarou que já corriam perigo sem se juntar a nós. Afinal, eles já estavam longe de sua terra natal, vagavam por longínqua terra estrangeira, deixaram a segurança do lar e de seus bens para trás e ainda por cima insistiam em sobreviver e lutar pelo o que acreditavam ser certo e a tarefa de impedir Gaia de fazer mais uma loucura não era das mais fáceis para eles se darem ao luxo de se colocar em risco desnecessariamente . Tader ainda tentou dizer-lhe que lutar contra o mal era necessário continuar com vida e não buscar a morte apenas para parecer que tem coragem, mas por fim acabou cedendo e se juntou a nós.

Após toda essa discussão, Burdealdea se apresentou. Encantadora como sempre, a princesa dos ventos seguiu quieta durante toda a viagem. Havia algo estranho nela, talvez algum medo, porém não perguntei isso a ela. Apenas me recordo dos olhos azuis dela perdidos na imensidão celeste. A filha do Lua nos acompanhou como uma sombra durante toda a caminhada até o acampamento.

Quando o sol se despedia do estamento em uma bela explosão de cores, chegamos ao acampamento e começamos a nos preparar para invocar Niana. Burdealdea permaneceu em silêncio e parecia estar assistindo a um funeral.

Às vezes eu via os olhos de minha amiga marejados e ela mirava a fogueira que acendemos com um ardor incomum, como se pudesse consumir o fogo ou se juntar ao seu luzir. As safiras da jovem da terra dos abandonados luziam tal qual um fogo azul e incendiário. Decerto, elas inundariam tudo se fosse possível, mas eram humildes e permaneciam quase inofensivas.

Enquanto Burdealdea continuava quieta em algum canto da penumbra, Miya invocava Niana com palavras furiosas e feitas de chamas. A irmã de Tader estava segura demais para uma garota que mal acabara de sair da infância, ela agia como se fosse a rainha das chamas com seu cabelo rubro a brilhar, talvez estivesse tentando impressionar alguém. Notei que meu irmão a contemplava enternecido, talvez já a amasse naquele momento e, quiçá, já a havia elegido a mulher de sua vida.

Eu e Tader acompanhávamos os movimentos das labaredas e as palavras proferidas por Miya. Esperávamos por Niana com uma paciência letal, daquelas que se tem quando sabe que nada mais se pode fazer além de esperar. Resignei-me ao silêncio gritante de minha alma. Indubitavelmente, eu desejava gritar por algo, mas veio-me uma sensação vazia que me preencheu por inteiro. Eu sentia um misto de tudo e de nada. Provavelmente, eu estava entre a apatia e a histeria.

Enquanto eu mergulhava cada vez mais profundamente em mim mesmo e me desconectava da realidade que me cercava, recordava-me de minha vida. Sorri para não chorar de algumas lembranças e mesmo assim eu insistia em submergir até os recantos mais sombrios de minha alma, aonde a luz nunca chegava.

Em meu espírito moravam o luto e as marcas da fome, em minha mente o medo estava aprisionado e sedento por liberdade. Entrei em meu próprio fim de mundo e era um terreno sem lei dentro de mim mesmo.

Tudo aquilo era parte de mim e naquelas profundezas residia um garoto magérrimo, miserável, abandonado e sofrido. Em algum momento, o menino me olhou nos olhos e me pediu para protegê-lo. Logo, reconheci quem o menino era eu, ele era eu mesmo e lhe abracei. Eu disse ao infante que sempre lhe amaria e jamais o abandonaria. Repentinamente, surgiu uma magérrima garota e tirou-o de meus braços.

Segui-os e cheguei a um campo de pessoas enfermas. Com certeza, essa foi a cena mais horrível avistada por mim durante minha vida: todos aqueles enfermos estavam abandonados ao relento esperando a morte. Indignado, indaguei o motivo de tudo aquilo e continuei seguindo as duas crianças.

Quando finalmente consegui alcançá-los, perguntei à menina quais eram seus motivos para ter me arrancado de meus próprios braços.

Instantaneamente, a garota ficou irada e gritou que não me soltaria jamais, ela precisava me proteger. Indaguei a ela as razões fortes o bastante que tornaram o garoto fraco tão importante para ela. No entanto, ao invés de responder algo, ela se descontrolou e me atirou todos os impropérios possíveis, disse que eu dificultei o trabalho dela quando aceitei participar dos jogos dos deuses. A pequenina me amaldiçoou e por fim começou a chorar no chão. Diante daquela cena, tive piedade dela e ela percebeu isso. Então, a menina se levantou e disse que não precisava de compaixão dos outros.

De repente, consegui ver com clareza o rosto da criança revoltada e, assustado, percebi a sua grande semelhança com Niana. Ela notou isso e sua voz tornou-se puro escárnio, assim ela me irritou durante alguns minutos, chegou a me chamar de covarde por não a agredir. Pacientemente, aguentei todas as chacotas dela e indaguei-lhe qual era sua necessidade.

Nesse instante, seu semblante modificou-se e ela se desfez em lágrimas. A garota me pediu para trazer sua irmã gêmea de volta para os seus braços e eu lhe disse que não sabia quem era essa menina. Chorando, a frágil menina me contou que Gaia a levou embora. Mortalizado, entendi que se tratava de uma menina que perdeu a irmã e eu já conhecia sua dolorosa condição.

Falei para a garota que a compreendia, porque a morte também raptou minha mãe e sabia o quanto isso era doloroso. Entretanto, ela me olhou e afirmou que eu não conhecia a profundidade do sofrimento causado pelo falecimento de uma mãe, pois a mãe dela era imortal. A órfã me falou sobre o sumiço da sua irmã, esta partiu enferma e abandonada, rejeitada pelos outros por ignorar a realidade. A menina me relatou que sua irmã era frágil e decidiu participar do jogo dos fortes.

Abracei a menina e chorei junto dela. Nesse momento, ela me segredou algo terrível: confessou-me que o pior da morte não é para aqueles que partem, é para aqueles que permanecem vivos e todos os dias do resto de suas vidas terão de lidar com as saudades. Ao ouvir essas palavras, notei que a menina já era tão amarga quanto um adulto surrado pela vida e lhe faltavam as canduras da meninice. Motivado por piedade, eu lhe disse que se ela quisesse poderia ficar em companhia de meu garoto interior: ele era fraco, porém sabia ser um bom amigo.

Ao ouvir minha proposta, ela ficou quieta e seus enormes olhos famintos me miraram espantados. Em voz baixa, confessou-me que ninguém antes havia se importado com sua solidão ou com suas dores. Abraçando seu pequeno corpo, eu lhe disse que me importava e há sempre alguém que nos ama, mesmo quando não conseguimos perceber isso ás vezes.

A garota fitou-me incrédula e indagou o motivo de eu acreditar no amor das pessoas, visto que elas falham e abandonam. Com ternura, afirmei que, no fundo, só tínhamos nossos afetos, só possuímos o amor ao qual nos entregamos e através dele acreditamos em uma vida melhor. Contei para a órfã que amar é uma necessidade e quando a satisfazemos, livramo-nos do vazio e de uma existência sem sentido e entorpecida.

Os olhos da menina brilharam, talvez a esperança os iluminasse ou quiçá fosse a gratidão por não entrega-la à solidão que os fizesse luzir. Só sei que ela desapareceu. Todavia, antes de sumir, a pequenina balbuciou que gostaria de acreditar no amor tanto quanto eu acreditava. Depois desses acontecimentos, emergi de meu mergulho em mim mesmo. Enfim, voltei para a realidade onde todos me cercavam com visível preocupação.

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