O primeiro amor

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A garota dos olhos áureos se chamava Pemi, ela era a filha mais velha do novo governador e se portava como uma verdadeira dama da elite de Sana.

Desde os primeiros dias percebi que Pemi era muito quieta, solitária, pálida e magra. Essa garota não me parecia muito viva e os pais dela estavam preocupados com o irmão mais novo dela, este era um bebê. A filha mais velha do governador era quase irreal e movia-se tal qual uma sombra nas dependências de sua casa.

Assim como eu, Pemi estava sempre sozinha em algum canto. No entanto, minha solidão era acompanhada silenciosamente por outros escravos em uma espécie de companheirismo mudo. A menina-sombra se abrigava na solidão absoluta, nem um ser existente a acompanhava, ninguém conversava com ela, nem meus irmãos de padecimentos, por esse motivo eu comecei a falar com ela.

Inicialmente nós conversávamos sobre o clima e outros assuntos cotidianos. Eu falava mais do que ela e muitas vezes notava certa indiferença por parte da filha de Sana, mas isso não me desencorajava de dizer "bom dia" e tentar estabelecer algum contato com aquela alma isolada que talvez amasse somente o vazio da solidão.

O irmão mais novo de Pemi se chamava Zoco, ele tinha meu nome e os pais dispensavam muita atenção com ele. Eu o adorava, pois ele era um bebê alegre, dono de uma alegria muito pura. Zoco gostava de brincar comigo e eu era uma das pessoas mais queridas dele.

O pai de Zoco e Pemi não era violento inicialmente, porém depois se mostrou muito cruel. Recordo-me das surras que eu levava diariamente, só não me defendia com a minha magia elemental de terra em consideração aos meus amigo. Ele me punia até quando eu conversava com os filhos dele sobre assuntos banais, então para contornar este problema eu conversava às escondidas com Pemi e dizíamos a todos que ela me mandava fazer serviços como ser o guarda-costas dela.

Tornei-me o único amigo da garota dos olhos dourados em Danji. Apesar de todas as nossas diferenças, eu sabia que de alguma forma éramos iguais, talvez o fossemos pelo nosso silêncio, pelos nossos meio sorrisos e pela nossa solidão.

Eu quase desconhecia o passado de Pemi e ela ignorava meu pretérito. No entanto, eu estava ciente de que ela amou Tli, um dos maiores magos de Sana. Senti ciúmes daquele desconhecido por ser dono do coração dela, mas jamais admiti isso, porquanto invejar é algo vergonhoso demais para mim. Entretanto, realmente ardi no fogo infame da cobiça e apesar disso fingi nada saber do passado dela. Quiçá, a menina-sombra também mentisse sobre o seu desconhecimento de meus pais mortos, de meus irmãos vendidos, de minha antiga amizade e do fato de que desde cedo aprendi a dominar a terra escondido. Talvez fossemos companheiros até nas mentiras que contávamos um para o outro.

Sempre tive orgulho de meus antepassados e de ser bruxo. Mesmo sendo rotulado como escravo desde pequeno, eu acreditava na liberdade e não me sentia inferior a quem quer que fosse.

Eu praticava magia da terra por tradição, para honrar e levar adiante o legado de meus ancestrais. Essa arte sempre fez parte de mim como meu sangue, meus ossos e meu coração. Portanto, quando eu a praticava, deixava a minha natureza falar mais altos sem grilhões nem correntes e dessa forma eu resistia a tudo o que me oprimia. Ser um mago era mais do que o simples fato de controlar o solo conforme minha vontade: era minha identidade e minha fé, nela eu me encontrava como parte do universo e via este como parte de mim.

Voltando a mim e á Pemi, houve um vendaval que mudou o rumo de nossa amizade para sempre.

Em uma fatídica manhã do outono seguinte Pemi recebeu uma carta de uma antiga amiga chamada Hutima ordenando que Pemi se juntasse a ela numa jornada para perseguir alguns poderosos bruxos revolucionários da colônia Aima. Na época os considerei mais foram fantasmas malditos do passado do que salvadores do mundo.

Também detestei Hutima, pois ela nunca havia se preocupado com Pemi antes, não lhe enviava cartas nem a visitava. Pemi já me falou dela: Hutima era irmã de Tli. Entretanto, esta amiga da menina-sombra não me incomodava tanto quanto seu irmão, porque eu não sentia que perderia Pemi para ela. No entanto, ironicamente foi ela quem tirou minha primeira amada do meu convívio. Naquele momento, se eu tivesse a oportunidade eu diria para Hutima que ela não poderia me roubar a garota dos olhos dourados dessa forma, mas me esqueci de que Pemi não me pertencia. Na verdade, ela nunca se entregou a ninguém a não ser à solidão.

Antes dessa horrível carta, eu já sabia dos bruxos rebeldes que haviam começado uma rebelião em Aima no inicio daquele outono. Esse levante havia me alegrado e eu tive a esperança de que a liberdade de meu povo estava mais próxima, mas não fiquei tão eufórico quanto os meus iguais. Porquanto, para mim Pemi era mais importante que esses magos do deserto, portanto eles não tinham o direito de ser os motivos pelo quais ela partiu de Danji. Então a raiva dominou-me e os amaldiçoei em silêncio. Cheguei a desejar que eles morressem para minha amiga voltar a Danji de onde ele não deveria ter saído. Tenho vergonha desse ódio aos feiticeiros da independência, pois os detestando eu estava traindo meu povo. Por causa de Pemi me tornei um traidor e eu sabia disso.

No dia em que Pemi partiu de Danji, senti meu coração sangrar á medida que o barco dela se afastava da praia. Entrei em desespero e gritei para o pai dela impedi-la de se arriscar em semelhante viagem como prova de seu amor à própria filha. Sei que falei mais por mim do que pela família dele, mas mesmo assim ele deveria se importar mais com a filha do que com vantagens politicas que ele obteria a deixando partir em semelhante viagem. Naquela horrível manhã, minha sentença foi dada: ao invés de impedir Pemi de cometer tamanha loucura, ele mandou me chicotear.

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