O motor ruge e todo o ônibus treme com o barulho no meio da madrugada. Anna se aninha na poltrona ao meu lado e espia a rodoviária com os olhos nervosos pela janela. Aperto sua mão e falo baixinho:
- Tá tudo bem, já despistamos eles.
- Eu sei, mas... ainda sinto medo. - Ela aperta a pelúcia do boneco de neve contra o peito. - E se no meio do caminho, policiais pedirem para revistar o ônibus dessa vez?
- Isso não vai acontecer.
- Mas e se acontecer?
Olho fundo nos olhos dela, sentindo a frieza emocional se instalar em mim e contagiá-la enquanto digo:
- Anna, isso não vai acontecer.
Minha irmã aperta os lábios e me olha com aqueles olhinhos azuis esbugalhados. Passo os dedos carinhosamente pelas suas trancinhas avermelhadas e ela suspira, se reclinando na poltrona, claramente mais calma.
- Pode dormir, eu fico acordada de olho nas coisas - falo.
- Elsa - ela diz se espreguiçando -, quando chegarmos em Long Island já vai ser sexta-feira?
- Sim.
- A gente podia comer sanduíches e... - Ela boceja, fechando os olhos - Sanduíches e chocolate... Como a gente sempre fazia com mamãe e papai.
Um riso afetuoso cruza os meus lábios.
- Tudo bem. Antes a gente vai fazer uma parada em Washington, então também vamos pode... Anna? - Chamo, mas ela já estava mergulhada em sono profundo.
Olho pela extensão do corredor do ônibus, o silêncio reinando, exceto pelo barulho do motor e pelos roncos suaves da mulher no lugar atrás de mim.
Embora tenha dito à minha irmã pra não se preocupar, ainda corremos um enorme risco. Nos últimos quinze dias, eu e Anna andamos fazendo algumas coisas ruins. Depois de escaparmos do orfanato Saint Lourdes, das garras da diretora Smith (Anna ainda alegava que ela devia ser uma bruxa) e da assistente social Nikki, eu e minha irmã passamos alguns dias pelas ruas da Virgínia, fazendo pequenos furtos em lojas de conveniência, batendo carteiras e invadindo as obras de um prédio pra passar a noite.
Isso tudo acabou por nos meter em encrenca, de vez em quando aparecia uma viatura e nós tínhamos que correr feito loucas, como há algumas horas, antes de chegarmos na rodoviária e embarcarmos no primeiro ônibus para Nova York.
Algumas horas depois, assim que amanhece, o motorista encosta num posto para fazermos uma parada rápida para o café da manhã. Cutuco Anna, que me segue sonolenta. Comemos, fazemos nossa higiene matinal em tempo recorde e voltamos.
Dessa vez, aproveito para dormir um pouco e acabo sonhando que estou de volta àquela pracinha da Virgínia, sentada num dos bancos.
- Ainda bem que seguiu meu conselho - o garoto encapuzado senta ao meu lado. - Vocês não vão demorar muito, mas precisam ter cuidado, a estrada pode ser perigosa.
- Por que Long Island? - Pergunto ao garoto nos meus sonhos.
- Sua mãe disse que lá seria seguro.
- Minha mãe morreu há quase dois meses - digo e imediatamente sinto aquele aperto no peito.
- Não, estou falando da sua outra mãe.
- Eu só tenho uma mãe.
- Elsa...
Viro o rosto.
Desde sempre os meus pais me disseram que eu havia vindo de outra barriga, mas que nasci no coração da minha mãe, Elise, e dessa forma sou irmã de Anna. Ponto final. Meu pai não comentava o assunto e eu também não perguntava. Morria de medo de me sentir distante da minha verdadeira família e, se a minha outra mãe havia me deixado e, há dezesseis anos não me fez uma ligação, deveria ser porquê, no mínimo, não se importa muito comigo.
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Solstício de Inverno
Fiksi PenggemarA atmosfera fica tensa e todos se calam num silêncio sepulcral para que Rachel anuncie: "O Cajado guia os quatro filhos de estação para levar o Céu à destruição A flecha da caçada rasga o tempo que acabou para a sétima vela que não mais br...