Onde está o freio?

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Era quase sete horas da noite. Daniel voltava a passos lentos do trabalho, estava muito suado e ofegante. Tinha acabado de carregar um caminhão com caixas de piso laminado que iria para Santa Catarina aquele dia. A umas duas quadras para que chegasse em casa ele vinha pelo canto da rua, cabeça baixa, pensando em nada, quando ouviu:

"Daniel, Daniel, espera."

Era Milena que vinha praticamente correndo ao seu encontro. Quis abraçá-la, mas se lembrou de como estava sujo e se conteve.

"Oi, amorzinho, tô todo suado, por causa do trabalho! Mas que surpresa é esta?"

Alguns metros dali havia um ponto de ônibus com banco de espera e ela sugeriu que se sentassem.

"Milena estamos quase em casa. Vamos pra lá e aí eu aproveito pra tomar banho e tirar esta inhaca!"

Não percebeu logo o tom de voz dela nem os olhos úmidos. Mas achou estranho que ela insistisse para que parassem ali mesmo.

"Meu Deus! O carrinho não tem freio! Vai cair!" Ele pensou rapidamente.

Milena tratou de dizer que tinha pressa em conversar e também não queria que ninguém na casa de Daniel tomasse parte no que ela diria. Pelo menos não imediatamente.

Sentados no banco de cimento Daniel esperou até que ela começasse.

"Daniel, minha mãe está doente. Tem um tumor na cabeça... estou desesperada. Ela quer ir morar com a minha vó em São Paulo para fazer o tratamento lá. Não posso deixá-la, Daniel. Ela é tudo pra mim."

Sua voz era pausada por soluços. Ela chorava e se deitava sobre o colo sujo dele.

O pôs a par de todo o quadro clínico de sua mãe. Falou que fazia seis meses que tinha sabido de sua enfermidade e pensava se tratar de coisa simples de curar, por isso não deu tanta importância e nem lhe contou nada.

As palavras iam entrando por seus ouvidos e já tratavam de inflamar o coração de Daniel.

"Onde está o freio?! Onde está o freio?!"

Sabia exatamente o que aquela conversa significava.

E é claro que sentia a dor de Milena por sua mãe. A mesma dor que a morte de seu pai causara e que ainda lhe era muito intensa. Sabia exatamente o que ela estava sentindo naquele momento. Mas foi egoísta mesmo assim. Só pensava que estava prestes a perdê-la. Sentia isso.

"Você não vai dizer nada, Daniel?" disparou depois de algum tempo chorando.

"O que você quer que eu diga?" Falou sem pensar, "qualquer palavra minha será inútil. Só posso dizer que vai ficar tudo bem, meu amor. No fim sua mãe será curada, e vocês ainda vão ver tudo isso como troféu. Mas eu sei que, por causa disso, você vai me deixar. Eu entendo, de verdade. Mas é muito doloroso sofrer duas perdas em tão pouco tempo... Agora entendo aquilo que você me falou sobre amores impossíveis..."

Ela colocou a mão em seus lábios e pediu que ele se calasse.

"Não seja bobo, Daniel, o nosso amor não é impossível. Vou para São Paulo com minha mãe, mas eu voltarei. Aqui, e ao seu lado é o meu lugar."

Ela foi com Daniel até em casa. Iam os dois calados, mas as mãos dadas se apertavam quase ao ponto de esmagar.

Felipe ainda não havia chegado do trabalho. Trabalhava mais do que doze horas por dia. Era como seu pai.

D. Joana tinha preparado a janta para que estivesse pronta bem na hora em que Daniel chegasse do trabalho.

Jantaram sem tocar no assunto e com clima de velório. Dona Joana percebia que algo não estava bem mas também se manteve em silêncio o que fez com que a refeição fosse breve. Depois Daniel foi levar a namorada ao ponto de ônibus.

"Não vou ficar em São Paulo, Daniel. Vou voltar e ainda teremos muitos jantares juntos, ouviu?"

Como Daniel não respondeu, ela repetiu a mesma frase, desta vez pegando sua mão e cravando nele os olhos.

O ônibus surgiu como a onda que vem quebrar na praia e apagar a coisa escrita na areia. No caso o que havia sido escrito eram aquelas ultimas palavras de Milena. Daniel não cria em nenhuma delas. Voltou para casa apressado e desnorteado. Foi rapidamente para o banheiro como a esperar que a água do chuveiro fosse capaz de lavar também a alma. Tentava equilibrar as ideias e as emoções, mas no final desequilibrou-se totalmente e acabou chorando copiosamente. Muito mais do que consentia.

Demorou muitíssimo no banho.

"Filho está tudo bem?" Sua mãe quis saber.

"Já vou sair, mãe. Tá tudo bem, sim."

Quando saiu D. Joana veio dizer que percebeu que estava acontecendo alguma coisa entre Milena e ele. Contou-lhe tudo o que Milena havia dito e sua intuição acerca do futuro como namorados. O fim iminente.

As palavras que ouviu de sua mãe marmorizaram à memória por todos os anos seguintes:

"Filho me escute. Não existe nada que seja capaz de findar um grande amor. Um grande amor nunca foi desfeito por más notícias. Nem pelo tempo. Nem por nada. Se ela te ama como diz e se você a ama. Pode ela se mudar para São Paulo, para o Japão ou para outro planeta. Passar anos por lá, o amor de vocês ainda será o mesmo. Deixa filho, que ela se vá. O tempo vai passar e no final tudo vai ficar bem, você vai ver. Deus faz tudo perfeito."

Nunca tinha visto em sua mãe tanta sabedoria ao o aconselhar e ao consolar seu coração. Suas palavras trouxeram a paz de que precisava para passar aquela noite e as próximas dos anos seguintes também.


Um Amor ImpossívelOnde histórias criam vida. Descubra agora