A Descoberta

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No ano de 1995 muitas novidades surgiram. As principais: D.Joana foi diagnosticada com Alzheimer. Esquecia todos os dias o remédio. Ora de tomar, ora onde havia guardado os comprimidos. Os nomes das pessoas frequentemente sumiam de sua cabeça, e ela começava a mudá-los por conta própria, apenas para que não ficassem sem. Daniel um dia fora chamado de Henrique, que era o nome de um sobrinho. Mas o acontecimento mais sério e não menos hilário ocorreu um dia em que ela tomou um ônibus para casa e esqueceu o ponto de descida e foi parar num bairro distante do seu. Por isso Daniel contratou uma mulher para cuidar Dela. D. Cícera, uma vizinha de muitos anos que era viúva e não tinha filhos. Para ela foi uma ótima terapia. Enfermeira aposentada e sem ninguém para conversar, adorava cuidar de D.Joana, e apesar da seriedade com que fazia, se divertia bastante com os frequentes esquecimentos de sua paciente que às vezes também achava graça e ria junto. Para D. Joana D. Cícera chamava-se ora Raquel ora Marisa.

Daniel havia comprado um carro. Era um Monza 1988 preto, invocado, e bastante elegante, que facilitou demais a sua vida e possibilitou que fosse mais vezes ver o professor Ari e saísse mais com Alice. Aliás, a amizade entre os dois aumentava a cada dia, mas ambos se receavam de levar este relacionamento ao nível amoroso. Por vezes, Daniel teve que pedir perdão à ela pois ainda se ressentia demais de seu velho amor. Ele era franco com ela e isso lhe dava credibilidade e tempo de Alice, que em algum momento sentiu cócegas maiores no coração por ele, mas mantinha em sigilo.

Mas a maior novidade aconteceu um domingo de manhã em que Felipe apareceu ofegante e pálido para falar com Daniel. Quem o recebeu foi D. Cícera.

"Oh Joana, venha ver quem chegou!"

A mãe assistia TV desligada. Levantou-se e vendo Felipe, lançou-se aos seus braços e quase chorando olhou para ele.

"Ai Felipe que bom que você veio me visitar. Já estava na hora de você deixar São Paulo e voltar a morar aqui, né? Sentimos tanto a sua falta!"

D. Cícera fez sinal para que ele não tentasse explicar. Felipe deu atenção e carinho à mãe, mas mostrou-se extremante avexado.

"Onde está Daniel, mãe?"

"Foi trabalhar."

Outra vez D. Cícera, interviu com um gesto, e cochichou que ele havia ido à Confeitaria Francesa. Hábito que agora se estendia também à idas solitárias de Daniel para tomar o café que o viciara. Felipe pediu licença à mãe e foi ter com o irmão. O encontrou saboreando o seu delicioso café acompanhado de um folheado de presunto e queijo.

"Oi mano, que surpresa, sente aí!" Disse Daniel feliz ao ver Felipe depois de algum tempo.

Felipe se sentou e pôs uma pequena folha de papel dobrada sobre a mesa sem dizer nada. Daniel olhou para aquele papel amarelado e deduziu se tratar de uma carta. Uma pequena agulha cutucou o seu coração.

"Sabe o que é isso, Daniel?"

(Outra agulhada.)

Felipe continuou antes que o irmão enfartasse:

"Isto é uma carta para o amante de minha esposa!"

Ele estava falando sério? Os olhos flamejantes afirmavam. Aquilo era uma carta escrita por Milena a algum amante. Desesperado de curiosidade Daniel tomou nas mãos a carta e viu que se tratava mesmo da letra de sua amada:

"Meu grande amor,

Já faz tempo que não te escrevo, mas isso não quer dizer que já tenha conseguido te esquecer. Pelo contrário; preso à minha memória está o teu cheiro, o sabor de cada beijo que me deu e a melodia do que tua voz me disse. A cada instante tenho a certeza de que nosso amor durará a vida inteira.

Sinto saudade de teus braços e de teu toque, e faria de tudo para estar contigo neste exato momento. Espero que sinta o mesmo.

Ontem quis ir ao Correio e te enviar todas as cartas que escrevi, mas por causa de minha mãe não pude. Em breve espero revê-lo e me lançar em teus braços e te amar. Nosso amor é a única certeza que tenho nesta vida.

Termino dizendo que nenhum amor é igual ao nosso e nada vai apaga-lo.

Te amo, pra sempre sua,

Milena."

Os olhos de Daniel encheram-se de lágrimas. A certeza de que ele seria o destinatário o dominava, a boca secou de repente como se estivesse num deserto. A carta era antiga, decerto, ainda tinha a mãe de Milena em vida, mas representava que antes pelo menos, de conhecer Felipe o amor de Milena por ele não havia passado. Aquelas palavras trouxeram a própria autora de volta aos sonhos de Daniel.

Ele segurava na mão a pequena folha de caderno enquanto fitava Felipe que tinha a cabeça baixa e os olhos abatidos.

"Foi assim: fui limpar a caixa d'água e encontrei uma pequena caixa de papelão escondida debaixo do telhado. A mesma que no dia em que nos mudamos Milena correu para esconder. A caixa estava cheia de papéis amarelecidos e com cheiro de bolor. Esta carta que você acaba de ler tem a letra de Milena, e além dela existem dezenas de cartas, que eu fiz questão de ler, uma a uma. Daniel eu estou arrebentado com a ideia de que Milena possa amar outra pessoa. Mas quem? Ela nunca me falou de nenhum ex-namorado, ou de qualquer coisa de seu passado amoroso, na verdade."

"E nenhuma carta traz o nome do destinatário?" Perguntou ressabiado Daniel.

"Pior que não, meu irmão. É mais um mistério. Não sei se quero mexer ainda mais nisso, conversar com ela, pressioná-la... temo pelo meu casamento. Mas é verdade que estou me corroendo por dentro. E por que estas cartas estão com ela até hoje? Por que não as enviou? E por que não as destruiu?"

"Talvez, Felipe, ela tenha escrito as cartas quando ainda amava este cara, e depois tenha se afastado dele, aí desistiu de enviar as cartas..." Daniel parecia um pouco mais calmo que seu irmão, ainda que por dentro um misto de satisfação e dúvida tomasse conta de si.

"E por que não as destruiu?"

Daniel não sabia.

"Aí estou cheio de minhoca na cabeça. Sempre disse a ela que queria ter filhos, mas ela tem me negado sistematicamente. Além do mais, desde de que chegamos aqui ela tem estado estranha comigo, fria, distante, como se tivesse a cabeça em outro lugar. Só pode ser por causa deste outro cara, Daniel. Não sei o que fazer."

Daniel ouvia a tudo buscando assimilar todas aquelas descobertas de Felipe. Certamente eram cartas para ele aquelas. E este amor do passado de Milena era por ele também. Mas duvidava que ainda agora houvesse resquícios deste amor em sua cunhada. Pois se houvesse, ela não teria insistido em casar-se, e principalmente com seu irmão. Contudo, deixar que as cartas não se perdessem dava a impressão de que durava o amor no coração da moça. Não havia, segundo Felipe, data nas cartas, mas seguramente eram do período em que se separaram, e provavelmente anteriores ao encontro entre Felipe e ela. Uma dose de remorso se apoderou de Daniel naquele instante. Ele, por tanto tempo jugou que ela o desprezasse após sua ida para São Paulo e que todo amor prometido não passara de palavras vãs e agora vinha à tona tudo isso.

Felipe ainda disse alguma coisa que Daniel não pode ouvir por divagar em seus pensamentos. Queria do fundo de sua alma encontrar alguma palavra que servisse de consolo ao irmão, lhe feria demasiado vê-lo assim, e de forma indireta ser o seu algoz, mas só conseguiu se aproximar e dá-lo um abraço em silêncio. Felipe também emudeceu, e assim permaneceram alguns segundos. A cena era comovente. Ali estavam dois homens presos a uma encruzilhada do destino, por causa de um mesmo amor. O segredo de Daniel lhe causava dores no mais íntimo de seu coração. Gostaria de contar toda a verdade a Felipe, mas sentia que não poderia.

Foram juntos para casa aquela manhã, sem nenhuma solução para o caso, ambos perdidos em medos e imaginação.

Um Amor ImpossívelOnde histórias criam vida. Descubra agora