Naquele mesmo dia Seu Rodolfo havia sido demitido após trinta e oito anos de serviço na mesma empresa. Embora isto significasse a sua aposentadoria, e o tempo para que ele descansasse, acabou desencadeando nele uma forte depressão.
Os dias que se seguiram foram muito difíceis. O velho não se conformava com a demissão.
Vivia, ora chateado e deprimido pelos cantos, ora irritado. Gritava por qualquer coisa. Brigava com todos. Cuspia fogo pelas ventas, como D. Joana dizia. Tudo reflexo do ócio a que fora submetido sem prévio anúncio. Todos sabiam que era o desemprego que estava causando isto nele, e por isso a tudo relevavam.
Tentou até enviar currículo a outras empresas, mas a idade avançada e o cenário econômico não ajudavam. E assim permaneceu Seu Rodolfo os últimos dias de sua vida. Entre ranzinza e deprimido.
Às vezes sentava no degrau da escada que dava acesso à sala de entrada da casa e ficava horas falando sozinho em voz baixa, resmungando coisas da rotina de seu antigo trabalho. E quando o flagravam assim não sabiam se o interrompiam ou ignoravam.
Seu Rodolfo sempre foi homem muito sério. Por isso não havia liberdade para se brincar com a situação, que ia se agravando dia a dia.
Houve uma manhã em que estavam os três, D. Joana, Felipe e Daniel recém acordados quando foram surpreendidos por Seu Rodolfo.
"Gente estou com pressa, hoje tô mais atrasado do que nunca."
Todo arrumado, banho tomado, barba feita, com a sua antiga pasta do trabalho nas mãos cumprimentou-os rapidamente e saiu sem nada dizer de onde ia. Sem entender nada todos se entreolharam.
"Aonde ele vai?" D. Joana perguntou, aflita.
Felipe levantou-se rapidamente e o seguiu até o ponto de ônibus.
Dez minutos depois voltavam os dois. O homem visivelmente envergonhado e triste. Felipe esperou até que Seu Rodolfo entrasse ao quarto para mudar de roupa para explicar que ele havia se esquecido que não trabalhava mais e pensava estar atrasado àquela manhã.
Os últimos dias de Seu Rodolfo foram de muito trabalho para a família em casa. Naquele primeiro ano de desemprego ele foi pouco a pouco perdendo a capacidade de se comunicar com todos. Alienava-se em um mundo distante que o punha em silêncio. Ficava olhando para o nada e falando sozinho coisas inteligíveis. Não queria comer, nem tomar banho nem nada.
A demissão do emprego foi também a sentença de morte para Seu Rodolfo.
Como ele mesmo dizia, "O homem acostumou-se ao trabalho depois que pecou no Jardim do Éden, e alguns homens de tal forma se acostumam à rotina que robotizam-se." Ele mesmo era este tipo de homem. Passava de dez a doze horas enfiado àquela fábrica. Voltava para casa já no começo da noite, apenas para tomar banho e jantar e logo ia dormir. Dormia sempre cedo. Temia perder a hora de acordar no outro dia para repetir toda a rotina. Nunca possuiu nenhum hobby e nos dias de folga passava a maior parte do tempo a assistir TV.
Mas apesar da fixação no trabalho era sim um bom homem. Sempre atento às questões da família. Educou os filhos para serem homens de bem. Apregoava a honestidade e o trabalho, claro, como as únicas formas de polir o caráter.
"Um homem pra ser homem de verdade, tem que trabalhar. Bandido só é bandido porque nunca aprendeu o valor do trabalho. Não tem nada melhor que o suor para matar vagabundo" Dizia convicto.
Estas palavras entraram na mente dos filhos. Felipe e Daniel sempre valorizaram o trabalho por causa do pai. E jamais conviveram bem com o desemprego.
Também não podiam dizer que o trabalho os tenha afastado. É verdade que o pai era mais ligado a Felipe do que a Daniel, apesar de o mais novo ser em tudo mais parecido com ele. Calado e esperto, como ele gostava de descrever Daniel. Já Felipe gostava muito de tagarelar. E mesmo não sabendo lidar com isso via em Felipe a ambição e a vontade de trabalhar que cedo despontava e isso o encantava demasiado.
Mas veio o dia 10 de dezembro de 1989. Uma manhã congelada em que Daniel tinha ido levar Milena à rodoviária para ir a São Paulo encontrar com a sua avó que voltava ao Estado depois de anos vivendo em Pernambuco, que o inevitável e indesejável aconteceu.
Daniel ia se aproximando quando viu uma movimentação estranha em frente da casa. Sentiu que o chão embaixo de si amolecera enquanto um nó na garganta e um aperto no coração denunciavam o que já sabia, mas não queria acreditar.
Havia uma viatura de ambulância e o carro de seu tio João, irmão de Seu Rodolfo, que nunca os visitava estava ali também.
Felipe sentado nos degraus da frente tinha a cabeça entre os joelhos enquanto um amigo seu o abraçava. Daniel passou por ele sem que ambos se vissem. Na sala, além de um médico e um enfermeiro, a tia abraçava a D. Joana que chorava copiosamente.
Ao ver a cena, Daniel não conseguiu manter a calma e frieza de sempre e começou a chorar. Não o choro desesperado da mãe, mas as lágrimas silenciosas que doravante seriam tão comuns.
Quando a mãe o viu levantou-se e se lançou em seus braços.
"Oh filho! Que dor... que dor..."
"Calma mãe, calma!"
"Foi melhor assim filho, ele vinha sofrendo demais..."
Sua mãe continuou a dizer alguma coisa que ele já não entendia. Contudo, aquelas palavras de fato trouxeram consolo ao coração dele. Era verdade. O pai estava sofrendo em demasia aqueles dias. A perda do emprego abriu uma cratera em seu coração que nunca mais fora preenchida.
O velório. Alguns amigos do trabalho de seu pai foram. Um deles pegou a mão de sua mãe e disse:
"Um homem para o trabalho, senhora! Um ótimo
homem." Isso o resumia bem.
Eles recordavam entre si algumas histórias que envolviam o Seu Rodolfo. Mencionavam a seriedade daquele homem com as coisas que fazia, e do quanto era colaborativo com todos. Em seguida, sem perceberem, começaram a tratar de assuntos atuais da rotina da empresa. O que num breve instante deu um certo receio em Daniel. O pai estivesse vivo para ouvir aquilo certamente despertaria toda saudade do emprego e outra crise. Mas logo atentou para o corpo do pai alheio a tudo.
Entre a hora em que Seu Rodolfo teve o enfarte e o sepultamento, foi tudo muito rápido.
Na manhã se foram do cemitério para casa para o primeiro dia sem o patriarca e com D. Joana visivelmente abalada.
Milena não pôde comparecer ao velório nem ao enterro. Daniel só pode a pôr a par de tudo quando voltou de São Paulo. Não tinha nenhum telefone e nem sabia ao certo onde ela ficaria.
Voltou dois dias depois do funeral e foi muito importante para lhe consolar. Os dois faziam nestes dias muitos passeios a pé com o objetivo de distraí-lo. Isso por imposição dela que dizia que era bom para ele não permanecer muito tempo dentro de casa para não ficar lembrando o pai a todo tempo. Duas ou três vezes conseguiram arrastar a D. Joana consigo, mas na maioria das vezes iam só os dois.
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Um Amor Impossível
RomanceA vida às vezes reserva amores impossíveis aos corações dos homens. Daniel foi vítima de uma dessas ciladas. Ainda jovem apaixonou-se por Milena para logo a perder. Um amor que o tempo não apagou e ainda se encarregou de escrever novos capítulos ano...