A silhueta de um garoto se escondia nas sombras duna acima, era uma forma sombria que me parecia estranhamente familiar. O susto me deixou na defensiva, segurei o GPS como se fosse uma arma e apontei para a escuridão.
– É você que estava fingindo ser o Hayden! – acusei me firmando de pé independente da falta de equilíbrio devido a inclinação.
Minhas pernas balançaram e minha respiração estava ofegante. Hayden apontou a lanterna e a luz branca cobriu o garoto. Por um instante meu coração parou. Olhei para Hayden que também estava pasmo.
Eles eram a mesma pessoa. A semelhança era estranha, inquietante, iguais e distintos ao mesmo tempo. Tinham os mesmos olhos intensos e lábios avermelhados com um sorriso sempre pronto para se formar. Eles eram idênticos, mas emanavam um ar diferente. Hayden parecia bom, doce e amável. Já aquele outro Hayden tinha mistério e arrogância escondida atrás de seus olhos azuis. Mas o que realmente destoava era a voz, os dois eram idênticos fisicamente, contudo tinham vozes que os faziam parecer o mesmo personagem dublado por pessoas diferentes.
Respirei fundo buscando uma paz interior inexistente.
– Quem é você? – meus olhos arregalados admiraram o espelho de Hayden.
Meus pés queriam se aproximar, mas senti a mão de Hayden me segurar. Ele não confiava naquele garoto. Olhei para ele percebendo sua aflição. Senti o peso que ele carregava ao olhar para si mesmo. Hayden questionava sua existência perante aquele garoto.
– Quem sou eu? – o garoto disse num tom quase musical. A decepção era clara em sua voz – Achei que você nunca esqueceria, afinal você me materializou...
Sem poder evitar, me deliciei na harmonia que ele criava com aquelas poucas palavras. A voz não era a de Hayden mas me causava a mesma nostalgia que sentia com o meu Hayden.
– Quem é você? – Hayden repetiu irrequieto.
– Geralmente me apresento como Nate, mas também respondo por Hayden original ou Ågaris, mas esse só ela pode usar – ele apontava para mim.
Minha perplexidade se tornou estupefação. Ele escutou Hayden? Olhei para onde Hayden se posicionava ao meu lado e para como o garoto olhava fixamente para ele. Ele podia vê-lo? Não era possível!
– Para o que você está olhando? – perguntei temerosa pela resposta.
– Seu amigo... – ele apontou com naturalidade.
– Você consegue vê-lo? – disse com a voz trêmula e lágrimas chegando aos olhos.
Gotas d'água que escorreram por minhas bochechas em pânico beirando um surto psicótico.
– Sim, eu posso.
Ri com sofrimento. O que eu deveria pensar? Como alguém real poderia ver o que estava em minha mente? Não era possível. Aquele garoto não poderia ser real, era a única explicação. Ele não passava de outra alucinação. As lágrimas caíam com intensidade.
– Você não está louca – o garoto disse como se soubesse meus pensamentos, o que tornava tudo ainda pior.
Ele se aproximou tirando um lenço de tecido do bolso da bermuda e secou minhas lágrimas. O gesto me assustou. Assim como Hayden seu toque era real, mas eu já não sabia mais o que era real.
– Você não é real – pensei alto.
Fechei os olhos incapaz de absorver aquelas palavras.
– Nós todos somos, você só precisa entender.
– Você não pode ser real e ver ele – disse em pânico – Você não pode, não pode, não pode, não pode...
– Eu posso, você só está vendo isso da forma errada – ele dizia me fazendo mergulhar nos oceanos que guardava nos olhos.
Eu estava devastada. Naquele instante qualquer resquício da pessoa que fui desapareceu. Fim, finito. Eu era uma boneca que porcelana espatifada no chão, pedaços de mim espalhados por toda parte. Cola alguma seria capaz de me concertar, nem os maiores especialistas resolveriam o quebra-cabeças que eu me tornara.
O observei caminhar em direção a Hayden.
– Magnífico – disse rodando Hayden como faria com uma estátua em exposição – Você fudeu com tudo, mas ainda assim, magnífico. Você excedeu qualquer expectativa, não que isso seja um elogio.
Hayden não disse nada, mas seu incômodo estava claro. Deu um passo atrás acuado.
– Você não está louca, não poderia estar, ainda assim falta em você a superestimada normalidade. Não inveje nenhum humano por isso – o garoto voltava-se para mim.
Eu era incapaz de entendê-lo, de dizer se ele era real ou não. Acho que nunca mais seria capaz. Eu já não sabia mais o que significava 'real'.
– Por que você tá aqui? – Hayden disse tirando aquela pergunta de minha mente.
– Eu disse a vocês. Preciso de um pensamento, acho que não poderia ter sido mais claro – o azul nos olhos dele parecia faiscar como se um fogo queimasse lá dentro – Mas prometo devolver, também prometo que tudo vai acabar, só cabe a você encontrar a única pergunta que realmente importa. Uma que não me pediram para fazer, mas que preciso que você responda.
– Porque você tá fazendo isso com ela – Hayden segurou o garoto pela camisa com uma agressividade que nunca imaginei existir dentro dele – Qual o seu propósito? Você não vê que tá machucando ela?
Minha reação foi de inércia. Eu não conseguia interferir. Um cansaço crescia dentro de mim.
– O propósito são as perguntas, perguntas que ela nunca faria se tudo não saísse do normal. Perguntas que nunca chegariam a resposta. Respostas que nunca se tornariam você. Você meu caro Hayden é um dos propósitos que sequer imaginamos que tínhamos.
– Para com isso! – gritei com a voz falhando – Você não é real! Você é um delírio da minha cabeça.
– Você não teria a habilidade para criar alguém como eu, você sequer deveria poder criar alguém como ele. Acho que é Darwin quem deveria agradecê-la.
Cai de joelhos com meu corpo pesado. Aquele extremo cansaço havia se espalhado por cada músculo do meu corpo, estava difícil respirar.
– O que você quer dizer com criar? – perguntei.
– Quero dizer que você precisa se lembrar do que realmente é capaz...
Antes que sua frase terminasse, eu estava deitada no chão. Meus olhos não consigam se manter abertos, o ar mal enchia meus pulmões. Fui perdendo a consciência numa névoa e antes que tudo ficasse preto escutei o baque abafado contra o chão. Hayden!
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Forgotten
Science Fiction"Nada fazia sentido. Um dia todas as ruas estavam cheias de pessoas se esbarrando umas nas outras, no outro eu abri os olhos e não havia sobrado ninguém" #4 em Ficção Cientifica (14/MAR)