[20] - Tempo

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Dia 75

Então o tempo passou. Achei que viveria com o remorço e a imagem de Diza sendo torturada pelo frio do universo, mas na maior parte do tempo nem lembrava disso. Eu era mesmo essa pessoa fria e sem coração?

"Não, mas não temos o que fazer".

Dia 124

Encarei o vestido que AgariS estendia para mim. Era como o que eu tinha a lembrança. Cinza com pequenos detalhes na barra. Grilo trançava meu cabelo colocando flores nas laterais.

– Eu preciso disso tudo mesmo? – Reclamei recebendo um puxão no cabelo por Grilo.

– Sim. Eles acham que você é uma deusa. Você tem que representar o papel quando entregar NarvI para o irmão menor dela. Eles vão criar ela como uma pequena e doce adorável domadora de atomos.

– esse é o nome que eles têm para nós?

– é o nome que tem para eles. Demos poderes para eles. E por isso eles se acham importantes, por isso também eles se voltaram contra nós e tivemos que sair de lá.

– Ainda não entendo como eles obrigaram vocês a sair. Achei que éramos mais fortes que todo mundo.

– Não foi sobre força, mas até onde estávamos dispostos a ir pra ganhar.

– Eu suponho que vocês não foram muito longe então – Grilo comentava sem tirar os olhos da trança.

– Não. Eles ameaçaram destruir a humanidade e tomar o planeta se não fôssemos embora. Não era isso que queríamos.

– Não achei que vocês se importavam com humanos.

– Não nos importamos, mas também não somos prol destruição gratuita.

Levantei a cabeça olhando para Grilo. Nos duas discordávamos do que ele dizia, destruir meu planeta parecia bastante a definição de destruição gratuita, mas não entramos na questão.

– Como vocês sabem que eles não tomaram o planeta depois que vocês saíram.

– Eles não queriam realmente tomar nada, só queriam que fôssemos embora. Destruição era só um meio.

– Só um meio – repeti percebendo o quanto a destruição era banalizada por ali.

Dia 125

Eu hiperventilava. Não, definitivamente não estava preparada. Tinha decorado minhas falas em grego antigo, estava vestida, penteada e tinha um bebê no colo. NarvÏ dormia serenamente me dando vontade de morder suas bochechas. Não queria largá-lá em um mundo qualquer dependendo da sorte. Sim, havia um plano. As pessoas que ficariam com ela cuidariam dela e poderíamos observar ela crescer. Mas não podíamos intervir, se ela sofresse não poderíamos fazer mais do que olhar. Tínhamos tanto poder e continuávamos a ser tão impotentes.

Observei a fenda que parecia não levar a lugar algum.

Não conseguia me fazer dar o passo, mas Grilo me empurrou impaciente. Cruzar aquele vórtex fez meu corpo formigar de uma forma dolorida como se meus átomos estivesse lutando pra se manter unidos.

– Wow! – olhei a minha volta.

Terra. Árvores altas e cheiro de chuva. O vortex tinha sumido e atrás de mim eu podia ver um garotinho pasmo largando sua espada de brinquedo.

Era Dion. Dentro de suas roupas gregas o garotinho parecia inofensivo, mas o medo o fazia controlar pequenas coisas a sua volta, pedrinhas do chão que seriam jogadas contra mim se não fizesse alguma coisa.

Lembrei das palavras que tinha decorado. Eu deveria entregar NarvÏ a Dion que a entregaria aos seus pais e pela marca que ela tinha eles entenderiam tudo.

Me aproximei lentamente descobrindo a manta que cobria minha pequena NarvÏ. Dion curioso se aproximou.

– Ela é um presente dos antigos deuses. Sua nova irmã – disse em grego antigo tentando não pronunciar as palavras erradas – Cuide dela.

Estendi a minúscula e indefesa bebê nas mãos daquele garotinho de não mais que 6 anos. Uma angústia me corroeu. Não queria deixá-la, mas não tinha opção. Ela estaria segura ali.

Dion me olhava com a bebê no colo sem ter certeza do que estava acontecendo. Fiz então um sinal tocando o polegar com o anelar duas fazes como ÅgariS me instruiu. Ele abriu um sorriso enorme. A fenda então se abriu outra vez atrás de mim. Dei um passo para trás.

Dia 905

– rebelião, motim, traição, deslealdade... existem varias palavras para o que vocês fizeram.

Virei para trás me deparando com HugoH. Seus braços cruzados e olhar furioso me diziam problemas, mas suas roupas desleixadas me diziam hippie relaxado.

– Cadê o ÅgariS? – perguntei percebendo que ele não tinha aberto o portal para eu voltar. Na verdade, o portal sequer deveria ter se fechado. Pelo que ele tinha dito, o trabalho dele era manter a passagem aberta.

– Ele está ocupado fazendo uma pesquisa de campo no Quarto Continente, você pode encontrá-lo lá mais depois. Mas vamos voltar ao que vocês fizeram. Já lidei com ÅgariS. Ele provavelmente não aprendeu a lição, mas preferiu dizer as coisas certas para a dor parar.

– Você o machucou!? – começo a avançar em direção à ele mas paro ao ver a arma que ele segurava em sua mão.

– Um pouco, mas já restabelecemos nosso laços de amizade. Melhor ter meu inimigo por perto onde posso ver melhor, certo?

Fiquei imóvel sem saber se deveria responder algumas coisa. Ele continuou:

– Esperei dois anos para poder m—

– Dois anos? – o interrompo com a testa franzida.

– Ele não te explicou? Esperto da parte dele, ficar aqui para receber a primeira tacada. Você provavelmente não teria concordado sabendo que o tempo lá passa mais devagar. Seus minutos lá foram anos aqui, mas chega de delongas – suas palavras se misturaram ao som do gatilho.

Sinto o impacto contra meu estômago e me desequilibro para trás. A dor emana pelo meu corpo. Quero chorar, mas não ia dar a ele esse prazer.

– Vocês roubaram minha mais perfeita criação e usaram com um de vocês – um segundo tiro atingindo minha perna, dessa vez dou um grito estridente – Ao menos usaram nela. NarvÏ era a de vocês que eu menos odiava – o terceiro tiro atinge meu braço – mas como disse a ÅgariS. Vou participar desse experimento. Quero ver do que ela vai ser capaz. Vou usar ela como meu objeto de estudo para encontrar uma forma de destruir vocês e quando menos esperarem vou usar as memórias de vocês para retirar seu conhecimento e depois destruí-las.

Um último tiro soa, mas não sei onde sou atingida. Tudo fica preto.

ForgottenOnde histórias criam vida. Descubra agora