- A GarotA -
Voltei a andar antes mesmo do sol se pôr por completo. Minhas pernas ainda doíam, mas não tinha escolha se não continuar. Minha água estava na garrafa final pela metade, minha ultima barrinha tinha sido devorada algumas horas atrás e ainda faltavam mais 10km.
Não consigo cobrir todo o caminho antes do amanhecer. Me deixo cair outra vez fazendo uma parada longa de descanso. Já não bebo a água, molho a boca para enganar a sede. O sol nasce e sou obrigada a voltar a andar antes que fique quente demais. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8km. Estou prestes a desistir. Minha água havia acabado horas atrás, já não tinha mais forças para continuar. Sigo cambaleando amaldiçoando o universo e as pessoas por terem me deixado para trás. Estava quente, quente demais para continuar.
Meus lábios estavam rachados, secos. Areia se distribuía por todo o meu corpo ocupando cada cantinho. Eu queria um banho, uma banheira cheia de espuma. Uma piscina com drinks com guarda-chuva. Queria chuva.
Sinto uma gota d'água em minha bochecha. Olho para cima vendo o céu límpido e terrivelmente azul. Não quero chorar de desespero, tenho medo de gastar água, mas não consigo me conter. Eu ia morrer de sede no deserto. Sozinha. No deserto. Por que eu fui idiota de achar que conseguiria? Poderia ter me contentado em viver sozinha no mundo, mas não, não fiz isso, fui me aventurar no deserto. As lagrimas pioravam. Tudo estava tão distante. Minha outra vida, essa minha antiga vida, minha vida com Hayden. Éramos só eu e eu mesma.
Dizem que nascemos e morremos sozinhos, mas não queria morrer sozinha. Se eu morresse Hayden morreria comigo? Sinto a água sobre meu rosto gelada. Como fui tão estupida de adentrar o deserto, não haveria uma equipe de resgate me procurando. Meu corpo sequer seria comido pelos urubus. O que aconteceria com o meu corpo? Minha respiração era pesava, meus passos ficavam mais lentos a cada instante. Gritei, gritei gastando uma energia que não tinha, desperdiçando meus últimos esforços.
Cai de joelhos gritando. Gritando e chorando, chorando e gritando. Eu soluçava, meu nariz escorria. Não era um choro bonito. Eu havia me tornado puro desespero. Não havia mais volta, não havia mais nada. Eu morreria no deserto. No deserto sozinha, sozinha e no deserto. Deserto. Sozinha. No deserto. Com sede. No deserto.
Foi quando senti um frio no topo da cabeça. Uma sensação que não lembrava mais. Olhei para cima com as nuvens ralas que passavam. Uma chuva fina caia, o tipo de chuva que eu costumava achar chata e inconveniente. Continuei chorando e gritando.
Abri a boca tentando pegar qualquer gota que fosse. Peguei a garrafa d'água e cortei o gargalo para aumentar o tamanho. Consegui não mais que um dedo de água antes que a nuvem se dissipasse, mas foi suficiente para me fazer andar um pouco mais.
Subi a duna com expectativa. Eu deveria estar chegando, já não sabia mais com precisão minha localização, mas eu estava perto. Podia sentir a presença de Hayden dentro de mim. Tentei me lembrar daquela garota que um dia eu fui (talvez garota não fosse o termo certo), daquele ser. Ela era feliz, otimista, inspiradora, certa si. Ela não tinha dúvidas, mas tinha perguntas. "Um mundo compreendido é um mundo sem perguntas". Agora fazia sentido.
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- O GarotO -
Estavam todos sentados à mesa, na cabeceira Hugoh olhava para seus 3 subalternos e depois para mim. Eu repetia o movimento fingindo um alto grau de interesse que, na verdade, não ultrapassava curiosidade, ou mera precaução. Zol se pronunciava ao meu lado enquanto eu observava Hayden, ao nosso lado, preso em sua caixa de espelhos sem ter ideia do que acontecia do lado de fora. Seu olhar desatento corria pelas folhas de Moby Dick tentando lutar contra o tedio, o cansaço e a destruição que lhe fora afligida.
Aparentemente meu relatório ainda estava falho e superficial, Zol zombava de minha abordagem a chamando de sentimental e pouco objetiva. Eles queriam mais do que uma análise genética ou cortes que cicatrizavam de forma normal e humana. Em outras palavras, queria Hayden morto para evitar problemas futuros, mas não disseram com essas palavras. "Queremos mais alguns testes" foi o que disseram. Eles o machucaram, talvez com mais vontade, pois ele era igual a mim. Zol não perderia uma chance de bater na minha cara, mesmo que não fosse realmente a minha. Hugoh observou com interesse O punho de Zol se chocar contra o estômago de Hayden e depois contra o rosto. Por mais que revidasse, Hayden nunca teve uma chance. Depois da briga injusta e sem sentido, Zol lhe tirou o ar. Roubou o oxigênio da sala até que Hayden desmaiasse.
– E se nós o apunhalássemos – Zol dizia olhando para mim, em sua mente estaria me apunhalando (não que nunca tivesse feito isso, metaforicamente e literalmente).
– Chega! – digo perdendo a compostura mas me recomponho – Nós já concluímos que Hayden não poderia ser mais humano. Ele não está escondendo nenhum poder para nos atacar enquanto dormimos, ainda porque não dormimos, então não temos esse problema.
– Você ficou muito sentimental Agaris. O que houve com o Nate que não se importava com nada – Zol fala de forma debochada.
Ignoro o que ele diz não querendo cair na dele.
– Ela não está fora de controle, – a defendi respirando fundo – ela está sozinha e com medo, NÓS estamos com medo. Nenhuma decisão racional pode ser tomada nessas circunstâncias. Ela é uma de nós. Eu posso ensinar ela a controlar suas habilidades e não precisamos matar ele. Podemos realocar ele no Quarto Continente. Ela não é uma ameaça, ela é nossa evolução.
– Oh... não, Nate. Escolha de palavras errada – o tom condescendente tomava a voz de Hugoh – Já alcançamos nossa maior evolução, continuar a subir pode significar uma queda dolorosa, você sabe bem disso. Eu entendo seu argumento, ela pode ser um trunfo, mas já tivemos a experiência com trunfos e eles se voltaram contra nós. Entretanto... eu vou te dar uma chance de provar o contrário – Zol múrmurou algo para Diza e Haia, mas Hugoh ergueu a mão exigindo silêncio – Vou te dar a chance de ensiná-la, de domá-la, se você falhar, ela vai sentir falta da solidão e do medo que está sentindo agora.
– Quanto ao projeto dela? O garoto humano que ela criou? – Haia indagou reclinando sobre a mesa.
– Vamos matá-lo, usá-lo como exemplo para que ela não fique criativa e crie outros – Diza sugeria brincando com seu rabo de cavalo bem feito.
– É uma péssima ideia – intervi tentando soar o menos furioso possível – Só vai deixá-la com medo e raiva, medo não é a resposta.
– Irônico que você diga isso – Haia olhava para mim não podendo deixar sua indireta mais direta.
– Não é irônico, é realista. Você não pode tirar a carne da boca do leão e não esperar uma briga – meu olhar fuzilava os três fazendo com que ele percebesse que não me referia só a ela – Entendo que não podemos deixá-la ficar com Hayden, mas ele pode continuar a viver no Quarto Continente. Ele não vai causar problemas.
– Não! Isso é ridículo. Vão haver disparidades. Ele está em tempos muito a frente, vai bagunçar tudo. Não vamos deixar o projeto dela afetar o nosso. É ridículo.
– Você é ridículo! – digo sem pensar me sentindo idiota.
– Que tipo de resposta é essa? – Zol me olha rindo.
– Não! – Hugoh interviu antes que uma discussão afervorasse entre Zol e eu. – Agaris, achei que tínhamos concordado que você tem suas prioridades, não é? Eu não sou idiota, sei que ela é uma de NóS – ele dizia numa entonação diferente para que somente eu entendesse – E por isso vou deixar que Hayden fique vivo no Quarto Continente, para que você possa ficar de olho nele, mas isso não é um presente. Eu vou manter vigilância sobre vocês, Zol, eles são sua responsabilidade. Reunião encerrada – ele levantou antes que alguém pudesse questionar sua decisão.
Diza, Haia e Zol murmuravam entre sí irritados enquanto Hugoh se aproximava de mim.
– Você me convenceu a acordar a consciência de volta. Não vai acontecer de novo. As consciências de Laykai e Narvi vão continuar guardas e bem adormecidas. E se você tentar alguma coisa, qualquer que seja para salvar seus amiguinhos, eu não vou perdoar outra vez.
Engoli em seco. Tive medo de que ele descobrisse que já havia roubado as consciências de Narvi e Leykai.
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Forgotten
Science Fiction"Nada fazia sentido. Um dia todas as ruas estavam cheias de pessoas se esbarrando umas nas outras, no outro eu abri os olhos e não havia sobrado ninguém" #4 em Ficção Cientifica (14/MAR)