Capítulo 2

134 5 1
                                    

    Não consigo andar. Não consigo falar. Não consigo me alimentar nem ir ao banheiro sozinha. Ai, que pena.

    Meus braços e minhas pernas são bem rígidos, mas eu consigo bater nos botões do controle remoto da TV e movimentar minha cadeira de rodas usando os botões que ficam nas rodas dela. Não consigo segurar uma colher ou um lápis sem deixar cair. E o meu equilíbrio é... Bem, digamos que o Humpty Dumpty - aquele ovo das historinhas que sentou no muro, caiu e quebrou a cabeça - consegue controlar o corpo dele melhor do que eu.

    Quando os outros me olham, acho que veem uma menina de cabelo castanho curto e cacheado, presa em uma cadeira de rodas cor-de-rosa.

    Aliás, não tem nada de bonitinho numa cadeira de rodas cor-de-rosa. O fato de ser rosa não muda coisa nenhuma.

    Outros pode ver uma menina de olhos castanho-escuro cheios de curiosidade. Só que um olho é meio torto.

    A cabeça dela é meio bamba.

    Às vezes ela baba.

    E é bem pequeninha pra quem tem quase onze anos de idade.

    As pernas são muito finas, provavelmente porque nunca foram usadas.

    O corpo tende a se movimentar de um jeito todo próprio: os pés começam a chutar do nada, e os braços sacodem de vez em quando, se conectando a qualquer coisa que esteja por perto: uma pilha de CDs, uma tigela de sopa, um vaso de rosas...

    Depois que concluem a lista dos meus problemas, os outros talvez se deem ao trabalho de perceber que eu até tenho um sorriso bonito e docinhas profundas. Acho as minhas covinhas bem legais.

    Uso uns brinquinhos de ouro.

    Às vezes, nem perguntam o meu nome, tipo como se isso não tivesse importância. É importante. Meu nome é Melody.

    Tenho lembranças muito antigas, de quando eu era bem, mas bem pequena mesmo. É claro que é difícil separar as minhas memórias dos vídeos que meu pai fez com a filmadora dele. Já vi essa coisa toda um milhão de vezes.

    Minha mãe voltando do hospital comigo, logo que eu nasci. Sorrindo, mas meio cesta de preocupação.

    Melody enfiada na banheirinha. Meus braços e minhas pernas eram tão magrinhos. Eu não me agitava bem brincava com a água.

    Melody apoiada nuns cobertores no sofá da sala - com um olhar feliz. Não chorei muito quando era bebê. Minha mãe jura que isso é verdade.

    Mamãe me massageando com hidratante depois do banho - ainda sinto o cheiro de lavanda -, depois me enrolando numa toalha felpuda com um capuzinho.

    O papai fez vídeos de mim recebendo comida na boca, na troca de fralda e até dormindo. Fui crescendo e acho que ele ficou esperando que eu me virasse, sentasse, andasse... Nunca fiz nada disso.

    Mas eu absorvi tudo. Comecei a reconhecer barulhos, cheiros e gostos. O f f f f f f f f  e o pssssssssss da caldeira ao ganhar vida todas as manhãs. O odor pungente da poeira à medida que a casa se aquecia. A sensação de espirro atrás da minha garganta.

    E a música. As canções me atravessavam flutuando e permaneciam em mim. Canções de ninar, misturadas aos cheiros suaves da hora de ir pra cama, adormeciam comigo. Melodias me fazem sorrir. Eu sempre pinto uma trilha sonora para minha vida. Quase consigo ouvir cores e sentir o cheiro de imagens quando música é tocada.

    Minha mãe ama música clássica. Grandiosas e retumbantes sinfonias de Beethoven ecoam no CD player dela o dia inteiro. Quando ouço essas composições, sempre tenho a impressão de que são de azul bem vivi, e elas têm cheiro de tinta fresca.

    Meu pai é fã de jazz e, sempre que pode, pisca para mim, e troca o CD do Mozart da mamãe por um do Miles Davis ou do Woody Herman. Pra mim, jazz é marrom, meio bege, e tem cheiro de terra molhada. A mamãe fica louca quando ouve jazz, e deve ser por isso que o papai põe esses CDs.
  
    — Jazz me dá coceira — diz ela, fazendo careta, quando a música do papai toma conta da cozinha.

    Aí o meu pai chega mais perto,coça os braços e as costas dela, e lhe dá um grande abraço. A mamãe desfaz a careta. Mas coloca música erudita de novo assim que ele vira as costas.

    Por algum motivo, eu sempre adorei música country: é barulhenta, tem aquela guitarra dedilhada. Música de dor de cotovelo. O country é que nem limão. Não a parte superazeda, mas com açúcar gostinho ácido. Tipo torta de limão e limonada fresquinha e gelada. Limão, limão, limão! Adoro.

    Lembro de estar sentada na cozinha, quando eu era bem pequena. A minha mãe me dava o café da manhã na boca quando uma música tocou no rádio e me fez gritar de alegria.

    Então eu canto
    Elvira, Elvira
    Meu coração tá pegando fogo.
    Vamos lá, bum-papa-bum-papa-uau-uau
    Vamos lá, bum-papa-bum-papa-uau-uau
    Eu-ou, Silver, vambora

    Como é que eu já sabia a letra é o ritmo dessa canção? Não faço a menor ideia. Deve ter invadido a minha memória de algum jeito. Talvez do rádio ou de algum programa de TV. Seja lá o que for, eu quase caí da cadeira. Fiz uma careta, me sacudi e me contraí toda, tentando apontar para o rádio. Eu queria ouvir aquilo de novo. Mas a mamãe só ficou me olhando, achando que eu tinha enlouquecido.

    Como é que ela podia entender que eu adorava "Elvira", essa música dos Oak Ridge Boys, se nem entendia? Não tinha como explicar que sentia cheiro de limão recém-cortado e via notas musicais de tons cítricos na minha cabeça quando ela tocava.

    Se eu tivesse um pincel... Uau! Que quando eu não pintaria!

    Mas minha mãe só sacudiu a cabeça e continuou colocando papinha de maçã na minha boca. Tem tanta coisa que ela não sabe.

    Acho que não esquecer nada, conseguir guardar cada instante da minha vida na cabeça abarrotada, até deve ser uma coisa boa. Mas também é muito frustrante. Não posso dividir nenhuma dessas memórias com ninguém, e nada disso vai embora, nunca.

    Lembro de coisas bem ridículas, tipo a sensação de ter um monte de aveia grudada no céu da boca ou do gosto do creme dental que não saiu direito dos meus dentes.

    Cheio de café passado de manhã cedinho é uma memória permanente, misturado com bacon e o som dos noticiários matinais da TV.

    Mas, na maior parte das vezes, eu lembro de palavras. Entendi bem cedo que existem milhões de palavras no mundo. Todo mundo à minha volta podia pronunciá-lás sem o menor esforço.

    Os vendedores da TV: Compre um e ganhe outro inteiramente grátis! Oferta por tempo limitado.

    O carteiro que batia na porta: Bom dia, sra. Brooks. Como é que vai o bebê?

    O caixa do mercado: Obrigado pela preferência.

    Todo mundo usa palavras para se expressar. Menos eu. E aposto que a maioria nem se dá conta do poder que as palavras têm. Mas eu me dou.

    Pensamentos precisam de palavras. Palavras precisam de uma voz.

    Adoro o cheiro do cabelo da minha mãe logo que é lavado.

    Adoro a sensação do rosto do meu pai antes de ele se barbear: pinica tipo feno.

    Mas nunca pude dizer isso pra eles.

Fora De Mim Onde histórias criam vida. Descubra agora