Capítulo 19

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    A semana passou voando. Eu estudava na escola todos os dias com a Catherine, depois da aula, com a sra. V., e em casa também. Eu revisei as palavras de todos os níveis do meu dispositivo. Treinei a ortografia de palavras longas e como associar datasbeb fatos históricos. Inventei meus próprios jogos. A mamãe me sabatinava sobre flores e termos médicos. O papai me fazia perguntas sobre economia, negócios, administração e esportes. Eu devorava tudo.

    Tem horas que eu sento no meu quarto e fico só digitando frases novas pra Elvira falar. Uma letra por vez. Demora horas. Mas, depois que a informação fica gravada na memória, eu só preciso apertar um botão, e a máquina diz a frase inteira por mim.

    Acho que a pergunta que as pessoas mais me fazem, com muitas variações estranhas, é: “O que você tem?”. É comum as pessoas quererem saber se eu tô doente, com dor ou se a minha doença tem cura. Então preparei duas respostas: uma educada, mas meio complicada, e uma mais desbocada. Para aqueles que demonstram uma preocupação genuína, aperto um botão e digo “Eu tenho quadriplegia espástica bilateral, também conhecida como paralisia cerebral. Meu corpo é limitado, mas o meu cérebro, não”. Acho essa última parte bem legal.

    Para pessoas tipo a Claire e a Molly, eu digo: “Todos nós temos deficiências. Qual é a sua?”. Eu mal podia esperar para usar essa. Quando mostrei pra sra. V., ela riu tanto que soltou um grunhido.

    Hoje é o sábado antes das eliminatórias, e tô sentada com a sra. V. no alpendre da casa dela. Vesti um casaco leve, mas esse é um daqueles raros dias quentinhos de fevereiro que enganam os jacintos. Eles pensam que a primavera já chegou. Tenho vontade de avisar os botões que botões que aparecem, dizendo: Esperem! Vai nevar na semana que vem. Fiquem quietos por mais um mês! Mas, todos os anos, as flores apressadas tremem de frio quando cai a última nevada da estação.

    A gente fica observando os tufos né nuvens que passam no céu. Um pintassilgo amarelo-canário tá empoleirado no corrimão do alpendre, olhando pro alimentador de pássaros vazio pendurado em cima dele. Se pudesse falar, aposto que ele ia pedir sementes de carro. E mais dias quentinhos como este.

    — O que você faria de pudesse voar? — pergunta a sra. V., tirando os olhos do passarinho e se virando pra mim.

    — Isso cai no quiz ? — digo, sorrindo enquanto digitava.

    — Acho que a gente já estudou de tudo, menos isso — responde ela, dando uma risadinha.

    — Eu teria medo de me jogar.

    — Por medo de cair?

    — Não, medo e ser tão bom que eu ia fugir voando — leva um tempão pra eu digitar essa resposta.

    Ela fica em silêncio pro um tempão e diz:

    — Você é um passarinho, Melody. E vai voar na segunda-feira, quando fizer o teste.

    Ouço a porta da nossa casa bater e abano pro papai e pra mamãe, que estão se aproximando. A Toffe, toda feliz porque está sem a guia, ainda bem junto deles, cheirando todas as árvores.

    A Penny caminha com tanta determinação! Ela sorri, faz careta, depois sorri, depois faz careta de novo, se concentrando pra atravessar a distância que separa as nossas casas e subir os degraus com as duas mãos e os dois pés. Ela tá com aquela jaqueta de inverno acolchoada e o chapéu do dia: um negócio de palha azul que tá todo amassado e torto de tanto ela sentar em cima. E vem arrastando o pobre do Peludo, claro.

    — Dii-Dii! — grita ela, quando chega no último degrau.

    Ainda fico abismasa de ver a facilidade com que ela faz as coisas.

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