Capítulo 7

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    Sempre que durmo, eu sonho. E não meus sonhos consigo fazer qualquer coisa. Sou a primeira a ser escolhida pra qualquer time. Eu corro tão rápido! Faço ginástica olímpica e nunca caio do cavalo. Sei dançar quadrilha country muito bem. Falo ao telefone com as minhas amigas, e a gente fica conversando por horas e horas. Sussurro segredos. E canto.

    Quando acordo e tomo um choque de realidade, sempre fico decepcionada. Preciso ganhar comida na boca e alguém tem que pôr a roupa em mim, pra eu poder passar mais um longo dia na sala das carinhas felizes da escola da Rua Spaulding.

    Na sala H-5, a gente teve um monte de professores. E nem sei dizer quantos cuidadores. Essas pessoas - normalmente tem um cara que ajuda os meninos e uma mulher que ajuda as meninas - fazem coisas como nos levar ao banheiro (ou trocar as fraldas de crianças como a Ashley e o Carl), dar comida na boca na hora do almoço, empurrar nossas cadeiras de rodas até onde a gente queria ir e dar abraços. Acho que eles não são bem pagos, porque nunca ficam muito tempo. Mas deveriam ganhar um milhão de dólares. O que eles fazem é muito difícil, de verdade, e acho que a maioria das pessoas não entende isso.

    É difícil até de manter os bons professores com a gente. Não posso culpá-los por ir embora, porque, como eu já disse, nossa turma nem sempre é fácil de lidar.

    Mas de vez em quando, a gente ganha um professor bom. Depois da esganiçada sra. Hyatt, da pré-escola, e do sr. Gross, o rei do game show, que nos deu aula no primeiro ano, a sra. Tracy, do segundo ano, entrou na nossa sala trazendo o frescor de uma brisa.

    Ela percebeu que eu gostava de livros, conseguiu fones de ouvido e colocou audiolivros em CD para eu ouvir. Começou com coisas pra bebês, tipo o dr. Seuss, do Gatola da Cartola, que meu pai lia pra mim quando eu tinha dois anos. Mas, depois de eu atirar esses livros no chão algumas vezes, em vez de me punir, ela se deu conta de que eu precisava de algo melhor.

    Ouvi várias coleções de livros por capítulos, algumas mais de menininha, outras bem bobas, de terror. Ela me fazia perguntas sobre cada livro, e eu acertava todas. Eram coisas do tipo: "Qual destes objetos ajudou a selecionar o mistério?". Aí me mostrava imagens de uma pedrinha, uma estrela-do-mar e uma caneta-tinteiro. É claro que eu sabia que tinha sido a pedrinha. Ela fazia festa quando a gente terminava as perguntas e já me pouca vá em outro livro. Naquele ano, eu ouvi todos os mais de trinta livros da Beverly Clearly e os quase cem volumes da série Crianças do vagão, que falam de quatro órfãos que moram num vagão de trem abandonado. Foi incrível ouvir esses clássicos norte-americanos.

    No ano seguinte, tudo voltou à estaca zero. Sei que os professores têm que registrar uns comentários para o próximo que assumir, saber o que vem pela frente. Mas ou a sra. Tracy não escreveu nada ou a sra. Billups, a professora do terceiro ano, não leu nosso histórico.

    A sra. Billups sempre começava o dia colocando o CD preferido dela. Eu odiava aquilo. "O velho MacDonald tinha uma fazenda" e "Brilha, brilha estrelinha" cantadas por crianças que não sabem cantar. O tipo de música que os adultos acham fofinha, mas que é horrível!

    Ela coloca aquele negócio a todo volume. Todas as manhãs, sem exceção. Toca uma vez, repete, toca mais uma. Não era por acaso que a gente sempre tava de mau humor.

    Assim que ligava aquela barulheira, começava a passar o alfabeto. De novo. Todos os dias, sem exceção. Para alunos do terceiro ano.

    — Bem, crianças. Este aqui é o "A". Quem consegue dizer "A"? Muito bem!

    A sra. Billups sorria e dizia "muito bem" mesmo que ninguém tivesse respondido.

    Será que se ela desse aula pra alunos do terceiro ano sem deficiência faria a mesma coisa? Provavelmente não. Quanto mais pensava nisso, mais brava eu ficava.

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