Encontro na chuva

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Estava quente

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Estava quente.

Eu sentia o cansaço mental e físico ruírem meu corpo. Mas quando pensei em subir as escadas, entrar, me trocar e depois ainda ter que descer para trabalhar, minha mente ganhou uma súbita descarga de energia. Não subi para trocar de roupa ou deixar a mochila porque isso entregaria a minha passada em casa. 

Comecei a vaguear sem rumo, sem nenhum destino. Eu queria andar até não haver mais nenhum pensamento na cabeça, apenas o entorpecimento. O silêncio. Era uma mania que eu tinha e havia herdado do meu pai. Ele também caminhava para espairecer.

Eu passava por um ponto de ônibus na saída da cidade, quando a chuva começou. Pensei em me deixar molhar, lavar o meu corpo, mas me lembrei dos livros na mochila. Então corri de volta pro ponto de ônibus que tinha uma cobertura de telha eternit. Larguei a mochila no banco e torci o cabelo, tirando a água. Estava molhada pelos poucos segundos que havia me exposto à tempestade. Comecei a me virar para admirar o céu desabando. Tinha mania de contemplar a chuva caindo pela janela. Sentir o cheiro, olhar o céu ficar cinza. Era meio depressivo, tinha uma certa nostalgia, mas me trazia lembranças boas. 

Minha mãe gostava de sentar-se à janela comigo no colo. Ficávamos sentido o vapor úmido e gelado grudar na pele, o cheiro fresco da chuva e o vento gélido que arrepiava os pelinhos dos braços. Sorri com a lembrança distante.

Vi uma figura correndo no final da estrada. Foquei para ver se era alguém conhecido, mas não reconheci por conta das grossas gotas de chuva. Comecei a pegar a mochila já me preparando para uma possível fuga e depois pensei melhor: isso só vai me atrasar. Então larguei a bolsa de volta no banco. Voltei a olhar na direção de quem corria e de repente percebi quem era.

Miranda...

Senti meu corpo relaxar. E então me recordei da mesma, ficando tensa novamente, me empertigando. Ela estava a poucos metros do abrigo. Suas botas afundando-se na lama que se formava. A enxurrada de água que descia estrada abaixo dificultava sua vinda. Olhei aquilo e imaginei a água levando ela e arrastando o seu corpo. Trágico...

Miranda saiu da tempestade e se largou no banco. Respirando com dificuldades. Apesar de estar meio abafado pelo dia quente, a chuva começava a resfriar o tempo. Cruzei os braços e olhei pra ela. Seu cabelo curto estava escuro, grudado na cabeça. Escorria água por seu rosto, fazendo pingar gotas grossas no chão. Passou um vento frio e eu me tremi um pouco. Ela me olhou com seus olhos cor de uísque e o clima ficou estranho, o silêncio constrangedor. Virei o rosto e voltei a fitar a tempestade. Espero que passe logo. E pareceu que o Tempo ouviu meu pensamento, porque, de repente, a chuva ficou ainda mais grossa e começou a relampejar. A luz prateada riscando o céu, o som reverberando pela cidade. Expirei, revirando os olhos nas órbitas.

Com a visão periférica, vi Miranda se levantar e a espiei. Ela estava tirando a camiseta branca que havia ficado transparente. Eu deveria continuar virada, éramos estranhas ali. Mas me vi encarando seu corpo. Suas costas lisas e com sinais espalhados, as costelas sob a pele clara, a sardas em seus ombros, as omoplatas seguindo o movimento dos braços. A camiseta passou por sua cabeça e ela começou a torcê-la. Derramando a água nas botas enlameadas. Ela virou de frente para mim enquanto apertava o tecido. Seu olhar no meu. Um raio riscou o céu e seu olho esquerdo ficou verde com riscos marrons, enquanto o outro tinha o mesmo tom de mel. A boca estava meio arroxeada e tremia levemente. Ela sacudiu a camiseta, voltando a se vestir, cobrindo o sutiã rendado branco. Reparei novamente no sinal perto do seu umbigo. Sua barriga úmida com gostas escorrendo e sumindo dentro da calça preta.

Quando ela terminou de se vestir, cravou os olhos nos meus, me deixando sem graça. Me senti culpada pela atração que ela exercia sobre mim.

Vi sua boca se mexer, no entanto não escutei nenhum som, reparando nos seus olhos que voltaram a ficar castanhos-claros.

—O quê? — indaguei. Ela sorriu de lado, sua boca já totalmente roxa.

—Lívia dá aula pra você? — Ela apontou para a minha farda. Eu olhei o uniforme também. Estava transparente, mostrando meu sutiã vermelho com bolinhas brancas. Voltei a cruzar os braços para escondê-lo.

— Não. Ela dá aula no Colégio Gabriel Alencar. Eu estudo na escola técnica da cidade vizinha. — Apontei na direção contrária à que ela apareceu. Miranda balançou a cabeça, assentindo.

Depois disso o assunto morreu e ficamos as duas olhando a chuva. Miranda sentada e eu de pé, braços cruzados. O céu ficou escuro após um tempo, anoiteceu mais rápido do que o normal, o frio se instalando. A chuva diminuiu, mas continuava forte demais. Eu poderia ligar pro meu pai vir me buscar, mas, de alguma forma, eu queria ficar ali, naquele ponto de ônibus, ensopada com Miranda. Mesmo que nem eu nem ela falássemos, eu sentia uma sensação boa. Uma energia me atraindo para ela.

Isso não era nada coerente, mas eu não estava em um momento de coerência após ter saído andando sem rumo e ir parar ali no meio de uma tempestade.

Minhas pernas começaram a doer e eu caminhei em direção ao banco. Isso me deixava um pouco tensa, mas acabei me sentando ao lado dela. Percebi que ela estava tremendo e me lembrei de um casaco perdido na mochila. Abri o zíper e peguei o moletom azul marinho. Estava com um cheiro estranho depois de tanto tempo no fundo da mochila. Passei pra ela.

— Não, não precisa. Veste você — murmurou, empurrando a peça na minha direção.

— Você ta tremendo, com a boca roxa. Eu não estou com frio. Não precisa ficar dando uma de educada comigo, Miranda. — O nome dela soou estranho em minha voz. Como se houvesse um forte sentido naquela palavra. — Principalmente depois do que fez na padaria — salientei e ela me espreitou, o semblante irritado, mas então abaixou o olhar e pegou o casaco.

— Me desculpe por ontem. Eu tava irritada porque aquelas pessoas estavam fofocando sobre mim. Queria descontar a raiva em alguém — ela confessou azedamente, fechando o zíper e cobrindo a cabeça com o capuz.

— Então quando fica com raiva dos outros, desconta em desconhecidos? — retorqui com irritação.

— Às vezes... — admitiu. — Você me deixou irritada. Eu queria sair logo dali e você estava indo devagar de propósito. Os cochichos aumentando... Quando vi...

— Meu irmão gostou de você— eu comentei após ela deixar a frase incompleta, mas senti um gosto amargo na boca ao proferir aquelas palavras.

— Dei um numero errado. Ele... é muito jovem. — Ela olhou pra mim, nesse momento, seu rosto quase sumindo na escuridão.

— Isso foi maldade e você também é muito jovem — Ela sorriu e eu sorri de volta. Mas ela parecia cínica, eu parecia boba.

Miranda levantou-se de repente. A chuva diminuíra para um chuvisco e eu não havia percebido. Peguei a minha mochila e me levantei também.

— Eu sou má — declarou enquanto saía para as gotas finas. Eu a acompanhei com um sorriso idiota no rosto.

 Eu a acompanhei com um sorriso idiota no rosto

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