Capítulo 23

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  Eram quase nove horas da manhã, quando Manoela abriu os olhos, e viu dois vultos,que se aproximavam, mais da cama. Estava meio aturdida e não conseguia, de pronto,entender os pensamentos.Sentia-se num leito, imobilizada. Quis mover-se e não podia. Doíam-lhe as pernas e o resto do corpo. Estava fraca e cansada. Sua mente, aos poucos, foi se clareando e lembrou-se do acidente de carro e das cenas que se seguiram, até que a tomaram nos braços. Devia estar num hospital, trazida por mãos piedosas.Quando ia conseguindo se recompor, intimamente, seu contato com o mundo,exterior foi se alargando. O quarto lhe parecia iluminar-se aos poucos, e tudo oque era nebuloso, como se estivesse fora de foco, foi se delineando.De repente, seus olhos pousaram em Ruth e no pai desta. Abriram-se,desmesuradamente, e tanto o pai quanto a filha, assim como nós, procuramos interpretar-lhe a reação.O brilho dos seus olhos era de surpresa e perplexidade.

- Que é isto? Meus inimigos ao meu lado?Que desejam? Humilhar-me pela minha derrota? - pensou.Ruth que lhe acompanhava o espanto, antes que Manoela reagisse de qualquer forma,tomou-lhe as mãos, entre as suas, e disse, com extrema doçura:

Manoela querida, tudo está bem. Nós estamos aqui para ajudá-la no que for preciso. Veja em mim uma irmã e, em meu pai, um seu pai, renovado, querendo pagar, ao seu coração, os seus erros, com a sua dedicação e o seu amparo. Não nos julgue ainda; dê-nos um tempo para demonstrarmos o nosso afeto. Não nos negue oportunidade de testemunhos, a fim de que possamos desfazer quaisquer laços inferiores, que existam entre nós.

A voz de Ruth soava como um canto de amor, e seus olhos, marejados de lágrimas,penetravam fundo nos olhos da enferma, querendo transmitir-lhe as emoções daquela hora de reencontro.Era a primeira vez, em sua vida que Manoela recebia manifestações de tanto afeto e de tanta humildade. Estava confusa; as palavras da jovem lhe chegavam de surpresa,carregadas de uma vibração, que lhe era desconhecida.

- Seria possível que alguém, perseguido, abençoasse o perseguidor? - pensou.Queria não acreditar no que ouvia, mas o magnetismo daquela jovem, a sua vibração de ternura, lhe pareciam autenticar as palavras. Ruth lhe pedira tempo para provar seu afeto; ela também precisava de tempo para aceitar essa manifestação que se lhe afigurava um tanto estranha.

- Deixe-nos ficar ao seu lado, cuidando de você, suprindo todas as suas necessidades de ordem material?Manoela olhou nos olhos de Antonio, e surpreendeu-se, também, com o brilho diferente. Já não a olhava com lascívia ou com desprezo, mas com ternura, como olhasse o perdão.Olhou para Ruth e, com algum esforço, balançou a cabeça em sinal afirmativo,sem, no entanto, deixar transparecer qualquer expressão de alegria.

Passaram-se alguns dias, antes que regressássemos ao caso Antonio, em companhia de Josias.Fomos diretamente ao hospital, no quarto em que se achava Neide, completamente recuperada, e prestes a deixar o hospital.

Antonio e Ruth, sentados juntos à cama conversavam com a jovem, animando-a para sair e enfrentar a vida lá fora. Aquelas três almas já estavam ligadas por laços profundos de simpatia.

- Estou muito feliz. Há alguns dias, estava à beira da morte, que levaria o meu filho, que ainda carrego comigo. Estava sozinha, no meu leito de dor. Muitas vezes,tive desejo de atentar contra a minha vida, mas a responsabilidade de vir a ser mãe, graças a Deus, livrou-me, de tal loucura. Encontrei em vocês, um pai carinhoso e uma irmã dedicada, que tudo têm feito por mim, como se eu fosse do seu próprio sangue. Deus haverá de recompensá-los por tanto bem que me fizeram e estão me fazendo.

- Deixe disso, querida, - disse Ruth, tomando a mão de Neide entre as suas,numa demonstração de apoio e de carinho. Sei, no entanto, que você não está inteiramente feliz. Quando lhe anunciei que hoje sairia do hospital, percebi uma sombra de preocupação em seus olhos. Pensei, pensei, e cheguei à conclusão de que está preocupada com a hora em que tiver que sair e enfrentar, sozinha, a vida lá fora, nesse estado, e sem ninguém para ampará-la. Não é verdade? 

Neide tinha os olhos molhados. Olhou, reconhecida, para a jovem e confiou-lhe:- Sim, é verdade. Não sei o que vai ser de mim, e logo mais, de nós. pensando em recorrer a algum serviço assistencial do governo, e ia pedir seu apoio.

- Minha filha, - disse Antonio, cortando-lhe a palavra. Hoje fizemos uma reunião em nossa casa, e decidimos convidá-la para vir morar conosco. Depois, que você der à luz, poderá ajudar Marta e Ruth nos serviços de casa ou, talvez, trabalhar na minha loja. Ganhará o seu ordenado mensal, para atender as necessidades da sua pequena família, e procuraremos ser a família maior que já não tem. Aceita? 

Neide emocionou-se. Nunca podia esperar que a bondade daquelas pessoas chegasse a tanto. Colhida de surpresa, a voz não lhe atendia ao impulso na garganta. Precisava acalmar-se para responder.Passou algum tempo e Ruth, aflita, perguntou-lhe:

-Aceita? 

- Claro ... que aceito. É que a emoção me embargou a voz. Precisei recuperar-me, para poder me expressar. Que Deus os abençoe. Que o Espírito de meu pai, que tanto me amava, tenha forças para ajudar-me, a pagar o quanto lhes devo.

Josias, chorando de alegria e de emoção, abraçou-se à filha e cobriu-a de beijos. Depois abraçou, demoradamente, a sua antiga vítima, e agora tão grande benfeitor,como se procurasse infundir-lhe novas forças. Abraçou Ruth, e enternecido,depositou-lhe um beijo na testa.

- Você me parece muito feliz, Josias, - disse-lhe com um cordial tapinha nas costas.

- E como é grande a minha felicidade! Faz tão poucos dias, eu era um revoltado,tiranizando e oprimindo com ódio destruidor, desanimado que estava com a vida e com os homens. De repente, duas das minhas vítimas me dão uma tremenda lição de amor, que mudou o rumo dos meus passos, passando à condição de meus benfeitores.Como gesto de amor, e com o desprendimento, com que socorreram Neide, ensinaram-me mais do que mil palavras de filosofia. Agora, vejam só, recolhem minha menina em sua casa, como se fosse uma filha do coração.

- Quando menos esperamos, chega o nosso dia do reencontro, à maneira de filho pródigo, com a verdade, com a Bondade Divina, que nunca está longe de nós, mesmo nos dias cinzentos dos nossos desacertos. O amigo, cedeu um pouco, quando concordou em deixar o crime, embora estipulasse um preço, que me pareceu justo. A esse impulso inicial, o senhor fez o resto, porque as coisas se sucederam de maneira que não supúnhamos, culminando na felicidade deste momento, da qual todos participamos. Além disso, em breves dias, você voltará ao convívio da filha e destes nobres amigos,para defendê-los das arremetidas do mal a fim de que a vida lhes possa fluir mais segura e mais tranquila,- disse Orlando, bondoso.

 - Oh! Quer dizer, que vou poder ficar ao lado deles, desfrutar-lhes o convívio?

- Exatamente. Assim terá, também, a oportunidade de pagar aos benfeitores, a dívida de gratidão que o amigo já contabilizou no livro da sua alma. Entende o mecanismo da Justiça Divina? A _forças _das _coisas se encarrega de tudo ligar ou desligar, no momento oportuno. Ontem você ia à casa de Antonio, na qualidade de verdugo,para oprimi-lo, em nome das sombras, amanhã voltará, na qualidade de amigo, para defendê-lo dessa mesma força sombria à qual servia.   

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