"Capítulo 38"

141 13 0
                                    

Mãe é um presente de Deus, é o que dizem. Mas ninguém nos avisou que presentes costumam vir com defeitos, talvez não de imediato, mas tem prazo de validade, como todos nós.

Essa ideia sobre ser mãe como sinônimo de angelitude parece uma coisa linda se olhada superficialmente, mas na prática é mais um peso do que uma benção para as mulheres e os filhos. Primeiro, imaginar que só a condição de mãe legitima uma mulher é muita crueldade pensar isso. Uma mulher é uma mulher independente de qualquer adjetivo ou função social que se queira atribuir a ela. Mulheres que não são mãos são tão dignas quanto outras que são.

O segundo peso é oprimir as mulheres para que elas não tenham o direito de sentirem emoções contraditórias, problemáticas, tolas ou até maldosas. Elas tem esse direito enquanto seres humanos, inclusive de lidar com as consequências disso.

Para os filhos isso é um mito que o perturba pela vida toda, afinal como seria possível questionar as próprias mães se elas são sempre empacotadas nesse manto de pureza? Mães são mulheres, com todas as suas belezas e bizarrices, que engravidaram. O amor delas não encobre nenhum equívoco, visão problemática ou perturbada. Elas podem ter raiva e descontar isso nos filhos em forma de educação. Portanto, é preciso desmistificar a pureza materna principalmente para que ela possa se tornar uma parceira adulta digna de amor e também de questionamento.

Um detalhe, mães também morrem. Algumas querem arrastar seus filhos para o túmulo e outras liberá-los para viver uma vida plena sem elas. É preciso entender qual dos dois tipos é a sua mãe...

O dia dos pais é sempre uma data menos festiva do que a das mães, parece que de modo geral as pessoas esperam pouca coisa dos homens-pais. E parece haver um elemento cruel no que se refere aos pais, não há meio termo, são inspiradores ou detestáveis.

Vou falar dos segundos, infelizmente mais abundantes que os primeiros.

As pessoas que não tiveram os pais por perto parecem ter uma certa idealização de como seria a vida com aquele homem em casa, cheio de sabedoria e amor. A verdade cruel é que a maior parte dos homens não é treinada a ser um pai afetuoso, presente ou sábio. Aliás, a maior parte dos homens é educada a ter uma moral duvidosa, daquela que promete uma coisa na frente e depois, por pura covardia, faz outra.

Aquele aconchego e proteção de pai vai dando lugar a um homem bravo, indisponível, emocionalmente instável quanto mais o tempo passa e novas responsabilidades surgem. Pai parece ser um bem que deprecia bruscamente com o tempo. Aí é preciso um jogo de cintura para entender essa mente impenetrável, quase oblíqua e assim resgatar aquele cara que já foi um menino dócil, afetivo, mas que pelo efeito rebote da vida se tornou um casca-grossa.

Quando se consegue aproximar desse cara parece ser um raio de alegria no meio da escuridão. Eu poderia dizer pessimista mente

 que se deve desistir de quebrar a casca, mas sou um sonhador nato. É preciso alternar temporadas de furadeira com outras de deixa quieto. Mas pelo bem da própria sanidade e vontade de conexão com o pai é preciso tentar. Na maior parte dos casos, lá na reta final, mais idoso, doente e enfraquecido o que estava resistindo a aparecer vem à tona. Nem todos têm a sorte de ver isso, mas quem chega lá pode se deliciar um pouco nos dias derradeiros...

Ser filho é a coisa mais fácil do mundo, nossa tarefa é receber. No entanto exatamente por isso temos um monte de complicadores nessa relação. Receber não significa aceitar tudo, concordar com tudo ou se submeter a tudo.

Quando eu tinha perto dos vinte anos (poucos meses depois do meu pai falecer) me dei conta de algo perturbador. Minha mãe, por conta que questões pessoais, me confessou que ela se sentiu muito feliz quando eu nasci. Ela me confidenciou que pensou: "finalmente, alguém que pode me salvar!".

Essa revelação veio depois de algumas conversas que tivemos onde eu me sentia sempre num papel de ajudar os outros e isso me privava da liberdade de escolher ajudar versus ser impelido por culpa ou dever. É diferente ajudar por alegria de ajudar por compulsão em ajudar. No meu caso isso veio de cedo, fui colocado num papel de salvador e isso me implicava me sentir maduro e importante, mas ao mesmo tempo sobrecarregado e incapaz de usufruir alegria e prazer sem ser pesado. Eu praticamente era um textão (chato) de Facebook ambulante.

Fui lentamente quebrando esse protocolo, mas não sem antes sentir muita culpa, achar que estava traindo minha natureza, me desfazendo de valores e até me achando ingrato com meus pais ou egoísta. A verdade é que por mais que eu os amasse não poderia e nem deveria seguir aqueles impulsos problemáticos que eram deles, apenas deles. Minha melhor forma de honrar meu pai e minha mãe é ser aquilo que eles sonharam para mim: feliz.

E se minha felicidade não estava atrelada a servir de guardião da felicidade deles então eu tinha direito de me distanciar dessa loucura que eles criaram para eles. Pense bem, eles já existiam antes de eu nascer, eram casados, tinham tomado milhões de decisões sem meu consentimento, logo, a infelicidade deles é responsabilidade deles também. Eles são adultos e precisam se reaver com suas limitações. Eu sou o filho, lido com as minhas, o que tenho de bom vou passar para a frente.

Como filho pude "trair" esse impulso parece que renasci, me senti mais leve, mais pleno, mais feliz e passei a ajudar quando podia, se podia e no limite de minhas forças. Isso se converteu em alegria de ajudar, o que me tirou aquela cobrança implícita de querer algo de volta. Se eu ajudo alguém e essa pessoa me dá as costas eu fico feliz por ela, sem dor no coração.

Tudo o que os nossos pais fazem por nós é por amor, mas nem todo amor é lúcido, ele vem carregado de nosso melhor e pior.

Amizade é uma coisa estranha, não sabemos como começou direito e até quando vai durar, é a eletividade por natureza. Com quase trinta e seis anos, já tive algumas vidas dentro dessa vida, algumas amizades sobreviveram, mas a maioria se desfez.

Cada novo Fred que ia nascendo tornava difícil arrastar amigos do Fred antigo junto. Eu me esforçava (nem sempre), mas via como algo difícil. Para quem é criterioso (as vezes chato), a amizade é uma ciência.

Tenho cultivado plantas em casa, elas são como as amizades, o menor descuido, em especial no começo e em fases difíceis pode custar a vida da planta.

Não sei se você tem amigos, V., mas deveria ter, pois isso iria impor um duplo desafio. O primeiro é de ter que cuidar de alguém e normalmente somos bem preguiçosos para fazer isso. O amigo é um bichinho que é alimentado de boas coisas, claro, se for uma pessoa razoável e sensata. Isso a "obrigaria" (já aprendemos que não existe real obrigação para nada) a ser atenta com alguém.

O outro desafio é o de ser forçada a construir uma amizade com sua futura versão. Não raramente, quando estamos em fases ruins da vida temos a tendência de nos filiar em amizades bem doentias. Essas amizades são aquelas que reforçam o nosso pior, são azedas, críticas e falsas apoiadoras (nos ajudam nos pondo para baixo).

Para seguir vivendo numa rede boa será preciso trazer algo de bonito para o meio de campo, entregar algo de qualidade para receber algo no mesmo nível. Começar a procurar em lugares onde se tem o mesmo gosto, os mesmos interesses (mesmo que tenha que inventá-los) costuma ser uma boa estratégia.

A amizade certamente não cairá do céu, esteja atenta, sensível, disponível, é como uma paquera, precisa haver uma real vantagem percebida do outro lado para seguir no contato.

Basicamente insisto nesse ponto, porque amizades salvam vidas, elas nos fazem seguir, na marcha da vida, para um lugar melhor...

Liberdade espiritual(espírita)Onde histórias criam vida. Descubra agora