Prólogo

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PRÓLOGO

Tão próximas de dois mares, como se fossem um santuário a ser protegido por duas barreiras profundas de águas tão distintas umas das outras, mas muito longe de terem saciada a sua sede.

Eram terras que continham rastros pessoais nas trilhas semiáridas e esbranquiçadas de calcário poroso, o qual fazia questão de se espatifar com o peso e o atrito das solas gastas dos mais diversos tipos de sandálias, selando no chão as pegadas que se tornariam, com o passar dos anos, uma mistura de historias e um unânime cúmplice das verdades que ali marcaram presença. Verdades estas que foram manipuladas e forjadas por tantos conluios e conflitos, por politicagens e ordens, trazendo consigo invasores e guerras, dores e preocupações. Verdades que conheciam os tempos de discórdia e os inseguros intervalos de paz, que trouxeram alívio político para muitos, mas também mágoas para outros. Verdades que, há mais de dois mil anos, marcaram profundamente o futuro da humanidade e rabiscaram o solo com as mais puras e humanas caligrafias de lágrimas, suor e sangue.

Terras usadas por inúmeros povos, em inúmeras idas e vindas de gerações, cujas memórias, crenças e sofrimentos carregariam até quando o tempo lhes permitisse. Uma sensação de abandono marcava os rostos de seus habitantes, não sabendo eles que seus caminhos eram cuidadosamente vigiados por olhos distantes, mas não presentes. Pela primeira vez na historia, o distante não se traduzia em espaço. Pela primeira vez na historia, seus passos não lhes pertenciam – eram apenas guiados.

Servindo de palco para um evento histórico memorável, dois sujeitos permaneciam quase anônimos em meio àquele povo. Um deles, visivelmente abalado pelos acontecimentos que marcaram seus dias anteriores, chorava igual a uma criança. O outro, mais conhecido como Mensageiro, que tentava consolá-lo com palavras esperançosas, estava agachado ao seu lado como um amigo fiel. Ambos haviam sofrido nas mãos de seus destinos, cada um com seus respectivos fardos, mas para um deles a consciência já havia pesado o suficiente para arrastá-lo até as profundezas de sua mágoa, tornando insuportável a mera ideia de ainda ter o direito de continuar vivendo.

Então, como se não bastasse a intensidade do momento em si, uma imagem próxima do muro onde estavam chamou a atenção do Mensageiro, que sentiu seu corpo congelar com a visão daquela figura riscada de forma trêmula sobre a superfície. Não era uma imagem qualquer, tampouco sem algum significado. Pelo contrário, era algo de que somente ele, naquela época, tinha conhecimento.

— Espere um pouco — disse o Mensageiro para o homem inconsolável, observando que, junto com o símbolo, havia uma flecha indicando um caminho. — Eu já volto, não saia daqui.  

A passos mancos saiu na direção sugerida com o coração acelerado, tentando entender como um desenho tão especial havia surgido ali, sem mais nem menos. Foi durante a caminhada, porém, que se lembrou de tudo o que havia acontecido meses atrás, e de quantas perguntas sem resposta havia deixado pelo caminho.

Com o coração pesado, pensou no imensurável sofrimento de Giovanni antes de sucumbir nos braços da morte. Pensou no sangue espalhado pelo gabinete, tal como nos resquícios grotescos de violência sexual realizada por um demente miserável. Pensou nos detalhes da cena do crime, com o galho de acácia rasgando a garganta do padre, tal como nos seus pulsos cortados e couro cabeludo quase arrancado da cabeça, cobrindo sua face com um manto líquido cor de rubi.

Lembrou-se das investigações que tanto o infernizaram, das perseguições e momentos de insanidade. Pensou na solidão e na saudade, que constantemente se faziam presentes em sua vida, como dois pregos que insistiam em ser martelados em sua cabeça. Pensou em seu velho amigo e na luz que ele trazia consigo, sendo capaz de iluminar até os dias mais obscuros ao lhe sorrir latindo. 

A imagem fez o Mensageiro abrir um sorriso singelo e carinhoso, que se apagou ao receber em sua mente a cena do sofrimento do chamado Segundo. Ele não conseguia acreditar na quantia de barbaridades que havia presenciado em tão pouco tempo; cenas que passavam pelos seus olhos como um filme de terror e que, infelizmente, eram capazes de encobrir até as lembranças mais doces.

Havia muito a ser discutido e muito a ser descoberto. A questão temporal, com séculos de diferença, era apenas um detalhe insignificante na busca pelas tão desejadas respostas. O Mensageiro sabia, porém, que precisava desvendar alguns enigmas para chegar até elas. Mas, antes disso, teria que seguir por aquele caminho indicado pelo símbolo e obter, finalmente, as peças finais do macabro quebra-cabeça.

As Últimas LembrançasWhere stories live. Discover now