As Últimas Lembranças

Capítulo XXXI

O retorno de Ângelo para o gabinete do arcebispo Ferdinand aconteceu da forma de sempre: repleta de palavras sem sentido e saliva em excesso. Quando conseguiu retomar sua consciência, Ângelo precisou usar como apoio uma das “confortáveis” cadeiras do gabinete, para só então ficar de pé e retomar completamente o equilíbrio. Normalmente, era o padre Estrôncio quem o ajudava a se levantar, mas desta vez não havia ninguém ali o esperando, nem mesmo o próprio arcebispo. Então, tendo guardado na memória as frases ditas pela criança, fez uma nota mental para anotar em seu papel quando chegasse em casa.

Ainda eram 17:34, pelo horário do relógio do gabinete de Ferdinand. Aproveitando que não havia ninguém pelas redondezas, Ângelo escreveu em um pedaço de post-it amarelo que acabara de voltar de viagem, mas que iria para seus aposentos e retornaria em duas horas. 

Enquanto atravessava o jardim do Vaticano, as cenas marcantes da viagem insistiam em martelar na sua cabeça, mas quem mais sofria era seu coração. Sentiu que não estava com aquela sensação de vivacidade dentro de si, mas uma profunda mágoa e pesar, como se sua alma estivesse sendo afogada em um mar de angústia e desespero. Era algo horrível, que certamente o impedia de sequer pensar em sorrir ou ter algum momento de felicidade.

De longe, percebeu que o prédio da Academia de Ciências continuava isolado pelos peritos, mas também conseguiu visualizar uma figura conhecida: o padre Walter Westebem. Isto o trouxe à mente que havia uma encomenda para buscar, o que o permitiria finalmente pôr aquele hábito fedido e sujo para lavar.

— Olá, padre, tudo bem? — cumprimentou Ângelo de uma forma fria, ao se aproximar.

— Como pode estar tudo bem, mesmo após a morte de Giovanni e o desaparecimento de Estrôncio? — disse Westebem, irritado, o que deixou o próprio Mensageiro espumando pela boca. Aquela era a gota d’água que faltava:

— O senhor está vivo?

— Sim, lógico que estou. — Desta vez, o padre denotou certa desconfiança no tom de voz.

— Estourou a Terceira Guerra Mundial, por acaso? — Ângelo mantinha a seriedade e a frieza enquanto falava, e por um momento se sentiu idêntico ao investigador Sniffer, o que lhe deu certo nojo.

— Lógico que não, Ângelo. Você está louco?

— Então, não me venha com essa conversinha de que não está tudo bem. — respondeu Ângelo, com fogo nos olhos, ficando a apenas alguns centímetros de distância do rosto de Westebem. — Um homem crescido, com a saúde que tem, ficando perplexo e reclamando sobre a tragédia dos outros. Se não tem o que fazer, então invente! Seja produtivo em alguma coisa. Vamos trabalhar!

— Calma, Ângelo! — falou o padre, assustado. — Você não está chocado com o que está acontecendo?

A pergunta o fez abaixar a cabeça e se lembrar do que havia presenciado em Jerusalém. Por mais terrível que tivesse sido a morte de Giovanni, não havia comparações entre uma cena vista com os próprios olhos e o relato de um investigador. Óbvio que Ângelo havia ficado chocado com o que acontecera ao padre Giovanni, mas o que presenciara ao vivo e em cores “há algumas horas” simplesmente havia mudado seu conceito de “chocante”.

— Olha aqui, padre, o senhor não tem noção alguma do que é uma tragédia. Bem ou mal, o padre Giovanni está descansando agora, mas o problema continua para aqueles que estão vivos. — Lembrou-se do Segundo, que apesar do sofrimento horrível, seria obrigado a conviver com aquelas lembranças do trauma para o resto da vida. — Os problemas não deixaram de existir. O senhor tem ideia de quantos estão morrendo agora, de quantas pessoas estão sendo estupradas, de quantas crianças estão passando fome? Tem ideia de quantos pais estão desesperados por terem perdido seus filhos para as drogas ou para a prostituição? Não! O senhor está aqui, com as mãos nessa cintura gorda. E está esperando o quê? Está pensando que o padre Giovanni vai retornar de seu descanso divino porque o senhor está indignado?