As Últimas Lembranças

Capítulo XXIII

A Lua brilhava intensamente no céu, na companhia das estrelas, o que proporcionava uma boa iluminação à cidade. Percebendo que o barulho se repetia com mais intensidade, Ângelo se levantou de onde estava e começou a procurar, buscando seguir o som das pedrinhas e sentindo que se aproximava mais a cada passo. Foi quando chegou próximo a um muro baixo, de quase um metro de altura, que se deu conta de que uma criança estava encostada nele, brincando com as pedrinhas. Para seu terror, porém, aquela criança era muito familiar. A primeira coisa que surgiu à sua mente foi a imagem dos olhos brancos e grandes, seguido de um sorriso macabro de apenas dois dentes. Esta simples imagem fez com que as pernas do Mensageiro ficassem trêmulas, sentindo seu coração quase pular pra fora da boca.

— Garoto, quem é você? — perguntou, não sabendo de onde tinha arranjado a coragem necessária para dirigir a palavra àquele ser.

— Estou jogando Cinco Marias — respondeu, simplesmente, ainda fitando as pedrinhas no chão, que de vez em quando pegava com suas frágeis mãozinhas. 

— Por que não joga com os outros garotos durante o dia? — A pergunta fez o garoto permanecer imóvel, igual a uma estátua, deixando cair uma das pedrinhas de suas mãos. Ficou assim por quase trinta segundos, tempo suficiente para Ângelo sentir um gelo percorrer seu corpo e outra vez tomar coragem para perguntar: — Sei que não deveria perguntar, mas está tudo bem com você?

Ao invés de respondê-lo, o menino deu um giro inesperado para trás, com os grande olhos brancos, como se quisesse penetrar na alma de Ângelo. O Mensageiro já devia estar esperando por uma cena como aquela, mas sempre acabava tomando o maior susto e quase borrava as cuecas, para seu desespero.

— A última deve estar no lugar da segunda — disse, como se estivesse novamente em estado de transe.

— O quê? — perguntou Ângelo, sentindo-se fraquejar e morrendo de vontade de sair correndo. Apesar disso, manteve-se firme, tentando pôr em sua cabeça que se tratava apenas de uma criança, nada mais. Não era o demônio personificado. Ao menos rezava para que não fosse. — O que quer dizer com isso?

Sem responder, o garotinho se levantou e jogou uma das pedrinhas na direção de um senhor que havia saído de casa, próximo de onde estavam. Ângelo ficou impressionado ao ver que a pedrinha tinha acertado exatamente seu alvo, que berrou algo semelhante a “malditas crianças!”. Quando o Mensageiro se abaixou, para que o senhor não o visse, percebeu que a criança havia desaparecido por completo, mas que o montinho de pedras permanecia ali, parado no chão, como se tivesse sido objeto de uma brincadeira horas atrás, não há poucos segundos. 

Achando aquilo muito estranho, Ângelo entrou em pânico e correu na direção do local onde Judas estava descansando, mas, quando se aproximou, percebeu que até mesmo o apóstolo havia desaparecido. O Mensageiro até tentou procurá-lo ao redor, observando se havia pegadas sinalizando para onde ele havia ido, mas não tinha uma trilha sequer. Naquele momento, achou que estivesse ficando maluco.

— Que droga! Primeiro, esse fantasminha que vive desaparecendo; agora, Judas! Não acredito que o perdi de novo! — praguejou para si mesmo, dando chutes na terra de raiva. Parecia que tudo estava acontecendo de propósito, obrigando que Ângelo retornasse ao seu tempo para obter mais informações com Estrôncio, mas não sabia se o padre ainda era uma pessoa de confiança. — Que droga, que Deus me ajude a conseguir voltar, pelo menos!

Só havia um jeito de tentar retornar, por mais que Ângelo não quisesse voltar à sua realidade para encarar Estrôncio e a morte do padre Giovanni, que até aquele momento permanecia um mistério para todos. Porém, não havia escolha. Qualquer coisa seria melhor que dormir sozinho na escuridão da noite, correndo o risco de ser atacado e devorado vivo por uma criança fantasmagórica e vampiresca.