Capítulo X

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Era um procedimento comum e um pouco constrangedor. Toda vez que o Mensageiro realizava aquele tipo de viagem, precisava passar por dois estágios: o primeiro, no qual ele ficava paralisado, babando e pronunciando palavras sem nexo; e o segundo, no qual ele efetivamente acordava para a realidade e limpava toda a sujeira. Para sua sorte, o primeiro estágio durava apenas alguns segundos, o que lhe garantia um mínimo de dignidade.

Como de costume, lá estava Ângelo, jogado no canto do laboratório, próximo a um dos maquinários, como se fosse um ninguém. O lugar se situava em um recinto abandonado no menor Estado Nação do mundo, mas que é a sede da maior religião do planeta. Alguns sequer diriam que aquele lugar, onde o Mensageiro permanecia deitado, era um laboratório, mas apenas uma sala dentro do setor de correios que servia de depósito aos produtos perdidos há mais de 20 anos. Ou seja, um lugar restrito ao qual apenas quatro pessoas tinham acesso, entre elas o próprio Ângelo. 

Os outros que também tinham permissão de adentrar àquele laboratório eram o padre Estrôncio, cientista responsável pela manutenção e operação dos equipamentos que realizavam a viagem temporal, e o padre Giovanni, responsável por colocar o projeto em ação sob as ordens de seu superior. Este era o quarto componente do projeto. 

Devido ao fato de ter iniciado sua viagem no laboratório, por óbvio era para lá que Ângelo havia retornado. E lá estava ele, novamente no estado de transe característico, pronunciando palavras incompreensíveis e aparentemente sem lógica.

Tu que olhas estas palavras, estejas preparado para enfrentar desafios. Saibas que a ignorância e o medo serão obstáculos para que tenhas desvendada toda a verdade... — começou o Mensageiro, quase que num sussurro, babando como sempre. Só que, naquele momento, não estava sozinho. 

O padre Estrôncio, médico de formação e cientista por opção, como tal um amante do isolamento, fez questão de permanecer por lá para presenciar pessoalmente o primeiro retorno de viagem oficial de Ângelo, já que este sempre dizia algo de bizarro em seus retornos para o presente, quando em treinamento.

— Qual verdade? — perguntou Estrôncio, aproximando-se da face do Mensageiro, ao mesmo tempo em que tentava não encostar naquela baba nojenta e pegajosa.

— Queres saber a verdade, Sacerdote? — perguntou, ainda em transe, quase que em tom zombeteiro. — Para saberes a verdade, deverás escutar o que sai da boca da criança...

Desistindo de tentar entender, Estrôncio se afastou do Mensageiro às gargalhadas, anotando que sua viagem temporal havia durado cerca de uma hora.

— Esse é o Ângelo que eu conheço! Sempre dizendo coisas sem nexo algum — disse, enquanto anotava, em tom de reflexão. — Desta vez, a mensagem veio um pouco diferente. Humm... interessante. Quanto tempo será que Ângelo ficou por lá? Hah, dados estatísticos importantíssimos para nosso histórico de viagens...

Aos poucos o Mensageiro foi retornando ao seu estado natural e, aos poucos, sua visão ia deixando de lado os vultos para materializar figuras humanas já conhecidas. Além de Estrôncio, o padre Giovanni também estava no laboratório, para sua surpresa, mas se mantinha quieto, apenas sentado em uma cadeira no canto da sala.

— Argh... — reclamou Ângelo para si mesmo, começando o processo de limpeza da baba. — Não sei por que isso acontece, sério.

— Olá, Bela Adormecida — saudou Giovanni, com um largo sorriso, levantando-se da cadeira, fazendo questão de zombar do Mensageiro enquanto caminhava em sua direção. — Lembra de mim?

— Sim — respondeu Ângelo, com falta de vontade, ainda frustrado com o excesso da própria saliva.

— Estrôncio, por que Ângelo nunca retorna dentro da câmara de vidro? — perguntou Giovanni, curioso com o fato de o Mensageiro sempre retornar para o canto da sala, nunca exatamente para o lugar de onde saiu.

As Últimas LembrançasWhere stories live. Discover now