Manhã de segunda-feira, de um dia qualquer ...

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Minhas asas não são feitas exatamente de 'penas' como as dos pássaros, mas digamos que elas tenham essa aparência

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Minhas asas não são feitas exatamente de 'penas' como as dos pássaros, mas digamos que elas tenham essa aparência. Elas são lindas, de fato. São delicadas, descritas como dádivas, um sopro do bem e mantenedoras da vida.

Mas não é nada disso! Ninguém pensa em sua agressividade e violência inatas! Asas são como estigmas! São piores do que chagas! Sua presença é uma condenação eterna! E eu as renegarei mil vezes sem qualquer piedade, sequer remorso. E assim como os arcanjos carregam as cicatrizes de uma bondade armada de espadas e destruição sangrentas, a verdade sobre os anjos nascidos na Terra é pior ainda: nós somos os depositários de todas as dores do mundo; sofremos por cada gota de sangue brotando de um ferimento injusto; queimamos por dentro na mesma sintonia daqueles que morrem lentamente de câncer; somos a respiração de medo dos soldados que lutam pela liberdade em um país em crise; dos pais que perdem a luta contra as drogas; da visita ao filho menor e estuprador na prisão; das crianças abusadas, das mulheres espancadas e solitárias, intermináveis sofrimentos...

Um dia, eu e Mônica estávamos no Parque Anauá, tomando uma cerveja naquela noite linda de lua dourada e cheia, eu perguntei a ela:

- Qual o filme que te causa mais medo, hem?

- Acho que "O Grito". – Mônica respondeu. – Por causa daquela criatura sinistra.

Eu olhei em redor e quase lhe disse:

- Há uns quatro espíritos parecidos com ela estacionados aqui no parque. Exatamente agora, querida, eu estou vendo uma mulher bem parecida com a daquele filme, só que ela tem o espírito de uma criança a seus pés. Foi uma criança que ela matou. A maldade que ela tem no peito é bem parecida com a maldade daquela mulher do filme.

Mas, na realidade, eu joguei uma nota de cinquenta reais na mesa e disse:

- Vamos embora daqui, Mônica, por favor.

Essa é a nossa realidade, diariamente, e eu não sei quanto aos outros anjos, mas eu venho me dopando com medicamentos pesados desde os vinte e seis anos. Até mesmo quando comecei a trabalhar na Polícia Federal, lidando com traficantes, eu já me dopava com drogas lícitas. Naquela época os dons começaram a ficar mais efetivos e claros, principalmente as visões. Hoje em dia, as doses estão mais fortes. Para tê-las, eu dissimulei ser esquizofrênico, psicótico-maníaco-depressivo, bipolar... Eu estudei os sintomas para ir ao médico bem treinado... outro psiquiatra, por sinal, o antigo notou minha tática e jurou nunca mais me atender. Ele bem soube 'para onde deveria ir' e eu mandei.

Aliás, eu conheço uma série de palavrões que as pessoas comuns mal sabem existir. Eu criei um rosário mental com esses palavrões... eu os rezo ao todo, medindo e pronunciando cada um deles com ódio e prazer. É o meu mantra obsceno... eu o rezo para me afastar do meu eu divino...

Que necessidade senti de ficar um longo tempo em silêncio, procurando não refletir sobre essas asas com leviandade. Pensando bem, e daí? A culpa pelo meu posicionamento contra elas existe antes mesmo de saber de sua existência. E se falasse a verdade aos outros? O quê aconteceria, além da longa fila de sofredores pedindo as graças de um anjo na porta da minha casa? Deus, que enviou meu pai arcanjo para amar minha mãe e me produzir, viria a terra para enfiar o dedo acusador na minha cara, trovoando: "Traidor da Casta!"? Ah... Ele não faria isso!

- E nem precisa, Deus! Você, maldito, tem dedos calosos de apontá-los em riste contra nós o tempo todo! Nem precisa 'descer dos céus' para mostrá-los em nossos narizes! Não por isso! Obrigado!

Cotidiano de um AnjoOnde histórias criam vida. Descubra agora