Asas de Anjo!

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Asas de Anjo...

Logo ao voltar ao trabalho, mesmo com atestado médico, no fim do expediente e ao descer as escadas do hall de entrada da DPF, eu vi Lucas e Bruno sendo cercado pelos mesmos espíritos que empurraram o meu rosto contra a parede meses atrás. Mas isso não era certo era, eu indagava, olhando para eles afrontosamente. Sentia uma revolta tão grande que, pela primeira vez, eu quase soltei a minha própria besta angelical para exterminar com aqueles três patifes de uma vez. Descendo as escadas eu gritei:

- Guaraná no Marivaldo, vamos?

- Guaraná? Tomar uma gelada, chefe! - Respondeu Lucas. Quando eles diziam chefe, era devido a minha ascendência indígena. Uma brincadeira que pegou quando a gente ainda era criança.

Entretanto, enquanto eles falavam, eu acompanhava o movimento dos três fantasmas. Eles se afastaram e se reuniram me encarando. O pior era como eles se vestiam absurdamente bem! Fantasmas tipo Armani, cabelos tratados... Puta que pariu! E eu com uma camisa da DPF de quase um ano já. Então, eu respondi:

- Vocês tomam cerveja, eu tomo guaraná! Ainda estou medicando!

E não fui na direção de Lucas e de Bruno naquele momento. Eu fui para cima dos três espíritos. Só não sei o que se deu comigo, realmente, pois o ódio que saiu de mim foi tão intenso que eles simplesmente se desintegraram e eu cai, quase desmaiando. Ao mesmo tempo ouvi a exclamação de Bruno: "Chefe? " E o palavreado de Lucas: "Que merda, cacete!". Os dois me ajudaram a levantar. Lucas foi logo avisando.

- Caso eu adoeça, eu não venho trabalhar, não! Fique sabendo disso, delegado. A gente tem direitos e o senhor está desobedecendo vindo para cá ainda doente. Depois vai todo mundo ficar falando: Se o delegado vem, você pode vir também, caralho.

- Comigo não dá mesmo. – Eu resmunguei. – Ficar em casa é pior.

Deu vontade de chorar, na verdade, ao pensar naqueles dois sendo assediados por espíritos psicopatas. Pela primeira vez eu jurei que seria um anjo e encheria espíritos de porradas caso visassem o meu grupo de trabalho. Eu estava me sentindo mal de novo, muito mal. Até resfoleguei. Bruno e Lucas me abraçavam e me levavam devagar para fora do prédio, porque a presença das trevas vem carregada de energias maléficas que transbordam pelo ambiente como se fossem coisas vivas querendo corromper a tudo e a todos. Até os objetos ficam imantados de podridão. Porém, era já a linda luz dourada de Boa Vista que invadia o hall de entrada do prédio.

Puta que pariu. Eu gostava daqueles dois sujeitos, estávamos juntos desde criança e por eles, e, para eles, eu seria um anjo sim... quero dizer, meio anjo. E já estava bom.

- Eu já estou bem, gente. – disse. – Nem quero homem me agarrando, porra.

- Como se eu gostasse muito de macho, né?

Mesmo assim, eles me levaram até o carro de Lucas. O sol da tarde iluminava Boa Vista em sua maneira sempre quente e bonita. Como o terreno é muito plano, dali onde estávamos, víamos longe!

Saímos da DPF em direção à Avenida Venezuela. Pedi que fôssemos a Mucajaí, dar uma volta pela BR 174. Adorava passear por ali. Costumava fazer o trajeto de bicicleta. Na luz do sol poente, a estrada era linda! Lucas virou o carro no retorno do Hospital Materno Infantil, o mesmo onde eu havia sido acolhido quando os três espíritos me atacaram e nos dirigimos à cidade próxima.

- Carai... – Comentou Bruno, no banco de trás. – Essa mulher tá é enchendo a cidade de florzinha.

Bruno referia-se a prefeita de Boa Vista. Ali, na BR, até ao anel viário, próxima a Polícia Rodoviária, buganvílias de todas as cores enfeitavam o canteiro central. A BR, muito larga, passava por cinco ou seis bairros, todos com suas casas de terrenos amplos, como é o comum à cidade.

De qualquer forma, era melhor ter flores do que psicopatas do além. E não só por isso. Eu tentei desligar a minha vidência, mas não tinha jeito. Toda uma série de horrores pós morte desfilavam aos meus olhos de anjo... mais uma tarde comum em um dia incomum.

Enquanto seguíamos pela estrada, olhando já a paisagem do lavrado bem plano, com as linhas de igarapés e buritis ao longe, eu me lembrava de um fato que aconteceu nas férias em Ubatuba, no início do ano. Nós estávamos na praia, ao observar um grupo de crianças brincando à beira d'água, três das várias gaivotas que estavam próximas eram mulheres anjos, depois elas se transformaram em gaivotas e foram averiguar outro grupo de turistas, e seus filhos, bem mais à frente. Ali, pelo lavrado, eram as garças e, algumas delas, pousavam próximas à sítios onde, provavelmente, existiriam crianças.

As asas das aves brancas, aliás, são um arremedo grosseiro das asas que nós, os anjos, possuímos. Eu não consigo sequer imaginar qual é o processo em meu cérebro que me torna apto a visualizar anjos quando 'vestidos' de algum animal. Mas eu sei, sem saber como, que a grande maioria dos 'anjos' estacionados na Terra não possui a minha vidência privilegiada. Aliás, mal compreendo o motivo de ser diferente... estranho... o número doze ou quinze surgia na minha cabeça enquanto pensava em anjos iguais a mim, ao mesmo tempo, havia no peito uma dor agoniada enquanto renegava a minha verdadeira natureza naquela estrada banhada do sol da tarde.

- Preciso ligar para a Mônica. – Eu disse.

- Foi ela quem pediu para a gente te levar para sair. – Respondeu Lucas.

Esse incômodo, essa dor, o maldito carma, o maldito estigma. Mônica largou o emprego para trabalhar só como dona de casa. Eu pago salário alto, com carteira assinada e todos os direitos garantidos. Ela quer estar presente quando o desespero me derruba, quando não consigo levantar da cama após uma noite de pesadelos ou depois de seres trevosos caírem sobre mim com toda seu ódio e fúria... Por ela e meu filho, pelos patetas da DPF eu continuo vivo. Mas se por mim, por esse anjo que sou, eu não pensaria duas vezes em me atirar no abismo.

Se deus dá um sonar a peixes cegos para que se orientem no lodo e algas dos mares e rios, ele também dá asas aos anjos reencarnados como se os marcassem de glória divina para um árduo caminho. Ah, sim! Nada tenho especialmente contra deus! Acredito na sua bondade infinita! Só não gosto da bondade de ter feito de mim um anjo ou de ter me reencarnado neste corpo humano... Like a Monkey...

Eu não amo a deus acima de todas as coisas. Nem tenho um amor infinitamente cheio de graça e respirações de bondade, e já que eu sou um anjo, creio que posso tratar deus sem tantas reservas e letras maiúsculas. E daí se for para o inferno por causa disso? E se for excomungado? Será que eu virarei um anjo duplamente caído por causa disso?

De qualquer forma, promessa é dívida, e eu resolvi levar a cabo o compromisso de cuidar dos meus policiais da DPF, porque, para nós, malho é uma palavra bem leve se compararmos ao que fazemos.

De Mucajaí nós voltamos para Boa Vista, uma noite linda como sempre, calor pegando. Marivaldo e sua esposa nos recebeu com a mesma simpatia de sempre. Marivaldo faz parte do circuito de Artes Marciais em Boa Vista. É um cara decente que trabalha duro. Guaraná com cupuaçu e cerveja para os patetas... Patetas, quando meninos nós éramos chamados assim. No gramado em volta dos quiosques de tijolos à vista, com bastante gente já aquela hora, espíritos perdidos entoavam seus gemidos de dor e arrependimento... terminei o guaraná e falei com os caras que não estava bem.

- Fiquem aí, gente. – Disse. – Eu pego um taxi.

- Não, véi. A gente te leva. 

Cotidiano de um AnjoOnde histórias criam vida. Descubra agora