"Não existe um só dia em que eu não esteja em confronto com Deus! Mas eu posso! Eu sou um anjo!" - Diz Pedro, em seu diário.
Pedro é um anjo revoltado com seus dons e poderes. Mesmo ao encontrar o seu caminho divino, se enfurece e se volta n...
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Deus, se eu te amo, por que eu te odeio?
Carma, estigma, missão... eu sou um anjo e isso é um peso, apesar do ar límpido e imaculado que se forma ao meu redor quando minha asa se abre e penso em aceitar o meu destino. Mas como lidar com essas asas, o que elas representam, de fato? Como chegar perto de alguém e dizer: "Olá, eu sou um anjo! Você deseja alguma coisa? Vai acender uma velinha para me iluminar?"
Hoje eu fui à casa de uma amiga para ajudá-la. Mateus, seu irmão, aparecera com várias feridas pelo corpo que apareceram do nada, da noite para o dia. Como de hábito eu ajudo mais pela amizade em si do que por outra coisa! Não é por bondade ou por causa de atributos compassivos de anjos.
Quando eu entrei no quarto do menino, um adolescente de dezessete anos, vi longas massas escuras envolvendo a cama e seu corpo. Feridas de cascas corroídas espalhavam-se por sua pele, o cheiro era insuportável. Minha amiga até passou uma máscara para mim. Então, com a cara e a coragem, e tentando manter o clima bem ameno (eu, que lido com bandidos, estava morrendo de medo daquelas energias) sentei na cama e comecei a conversar com o rapaz. Segundos depois, forte onda de calor invadiu meu corpo. A dor que se seguiu foi tão intensa que só não desmaiei por causa da minha amiga. Ela puxou minha mão das mãos do irmão e me levou para uma cadeira longe da cama.
Mesmo de lá, eu continuei a sentir os efeitos daquela enfermidade. Minha amiga trouxe água gelada. Eu bebi quatro copos de uma vez. Foi quando meus olhos e a minha pele porejaram sangue. O rapaz ficou aterrorizado, começou a gritar, tentando sair da cama. Minha amiga conseguiu segurá-lo enquanto o pai e a mãe vinham em meu auxílio. As dores eram atrozes pelo meu corpo, nunca algo como respirar se tornou tão difícil, como a de um ataque cardíaco. Depois disso, eu só me lembro de água caindo sobre sangue, o pai de minha amiga que me vestia e mais nada.
Horas mais tarde, e acordando de um sonho agitado, eu lhes disse:
- Parece que traficantes querem se envolver com o Mateus. Ele é bem popular no colégio. É bom aluno e bom menino. Se usar drogas, seus amigos passarão a usar também. Então, eles mandaram fazer um trabalho pesado para que as trevas assediassem o Mateus, por isso as feridas e a febre.
O pai do menino começou a chorar, a mãe encobriu o rosto. E não só por isso! Mateus estudava em um bom colégio público! Desses que rapazes e moças das redondezas estudam! A resposta que eu dei para aquele senhor deve lhe ter sido ainda mais revoltante:
- É por isso mesmo! Traficantes querem que meninas e meninos estudiosos sejam seus porta-vozes. E até os envolvem com esse tipo de energias doentias. Ainda bem que ele adoeceu, pois, agora, poderia estar levando drogas para o colégio. Lúcia, eu sei que vocês são católicos atuantes. Mas precisam acreditar que há muita gente ruim no mundo usando magia sagrada para fazer o mal. Rezem em casa para que estes seres hediondos possam se iluminar, que não mais se entreguem à escravidão espiritual. Onde há oração, as luzes do bem se acendem!
Os motivos de ter dito sobre magia sagrada e sobre luzes do bem se acendendo? Nem faço ideia! Sequer sei o que é magia sagrada! No outro dia, eu acordei em casa, na cama do meu filho, depois passei por três dias de cão. Lucas e Bruno que foram me buscar na casa de Lúcia a pedido da minha esposa. Sua família não tem carro. Eles, como a maioria da população de Boa Vista, possuem motocicletas, mas usam bicicleta como meio de transporte no bairro onde moram.
Seria Bruno a me explicar o que era magia sagrada, a prática do bem dos umbandistas. Eu nem me interessei porque é assim: eu falo pela dor do abandono de crianças pelas ruas; a solidão de mulheres sacaneadas por seus maridos; a fome, o frio, a sede; o desespero de parentes com filhos ou familiares nos hospitais; o ódio de uma mãe vendo seu filho assassinado por armas, sejam elas das guerrilhas urbanas ou guerras injustas; as torturas sofridas por quem não teve opção; o que mais posso citar, o olhar de dor e tristeza do mendigo ao me ver passar de bicicleta? Naquele momento eu entendi sua vida de privações.
Mas não há como pensar nas piores coisas que acontecem aos homens para dar alento a minha própria existência. Eu sou um anjo e sinto no coração todas as lágrimas vertidas no mundo. Não há descanso! Continuamente sangra. Porém, se parasse... se fossem horas de trabalho, com direito ao décimo terceiro, férias, fins de semana... noites de sono reparador... ah, sim... noites de sono... dormir seria um bom começo.
- Nós somos privilegiados, cara. – Bruno diria. – E, pelo visto, tu mais ainda.
- 'Tá' falando do que, 'véi'? – Indaguei, a voz rouca, eu estava me sentindo profundamente cansado.
- Dessa tua mediunidade, pateta.
- Para a puta que ti pariu, caralho. Te boto na cadeia e aí tu vais ver o que é ser medianeiro...
- Opa, opa, querido... – Mônica interferiu, com sua voz meiga. - Eu não sei como vocês se tratam lá no trabalho, mas, aqui em casa? Por favor...
Bruno sorriu, gentilmente, comentando:
- Tem uma boca suja esse cara, Mônica. – E, com bondade, disse: – Eu sinto muito, chefe. Eu sinto muito, de verdade.
