Anjos da Remissão!

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06 de 10 de outubro (ano quase no fim)


Pela primeira vez, eu acho que posso afirmar que gostei de ser um anjo, isso por causa do uso remediador que fiz de um dos meus dons ontem à noite. Eu nunca gostei de dormir por causa de pesadelos alarmantes em lugares repletos de dor e sofrimento, trevas e terror, fora o contato com sofredores ou agressores atrozes. A insônia é grave por causa disso, desde criança, aliás, e, hoje em dia, dormir só com remédios pesados, todas as gramas aliás. Dizem que se você repetir uma coisa 20 vezes ou durante 20 dias se adquire um hábito, pois bem, o resultado para mim: insônia mórbida. Entretanto, o sonho foi admirável e posso, de fato, ajudar as pessoas sonhando assim: Eu havia saído de férias para uma cidadezinha que não conhecia e não era em Roraima. Fui de ônibus e, enquanto entrávamos cidade adentro, eu me maravilhava com a grande quantidade de árvores repletas de flores coloridas, por todos os lados.


Fiquei hospedado na casa de um jovem casal. Eles eram distintos, felizes e educados, até perceber o ódio repleto de recalques em centelhas de rispidez no olhar, um tom de voz raspando a ferocidade e certos comentários sarcásticos, ou o desprezo em única palavra. Apesar da atmosfera clara do sonho, a rispidez e o desencanto mútuo criavam uma nuvem escura dentro da casa. Nem mesmo o cuidado da esposa pelos móveis e objetos de decoração - todos de uma simplicidade e beleza que só demonstravam seu carinho pelo casamento - conseguia diminuir a intensidade perigosa daquela atmosfera tempestuosa.


Certo dia, ensolarado e tranquilo, eu presenciei violenta briga entre o casal. Acusações foram trocadas, raiva e ódio transbordavam de seus corpos. Ela, completamente desnorteada, trancou-se no quarto. Ele foi para a marcenaria no terraço. Eu fui atrás para tentar acalmá-lo. Na mesma hora a minha vidência se abriu: perto dele estava um menino de oito anos, os olhos esverdeados do pai e a pele amorenada da mãe. Eu me surpreendi ao saber que era o filho do casal. Não havia um só retrato seu pela casa. Eu até desconfiei que a mãe se trancara no quarto para abraçar a única fotografia do filho, preservada como se fosse o mais precioso objeto de sua vida, assim como as minhas intuições alertavam. Na cidade, em meus passeios diários, ninguém mencionava a existência daquele menino. Nunca! Nem mesmo que o casal tivera um filho, agora morto.


O menino revelou, então, o dilema vivido pelo pais: ele próprio, muito levado, causou a própria desgraça, e o casal colocava a culpa um no outro. O pai por ter deixado o parafuso da serra elétrica mal apertado após uma troca; a mãe por não ter encadeado o portão que protegia a casa do terraço. No entanto, disse o menino, fora ele quem havia desobedecido à ordem de não ir à marcenaria. Fora ele quem, quando os pais dormiam após o almoço, ligara a serra para cortar madeira. A serra, ao resvalar, devido ao parafuso solto, cortou seu braço pelo meio, dos dedos até o cotovelo. Era um dia quente, os pais dormiam com a central de ar ligada, eles não haviam escutado qualquer ruído da serra, nem o grito de dor do pequeno garoto ao ser cortado.O menino contou ter desmaiado após o corte, a serra havia parado de funcionar, assim como o barulho do motor. Mesmo quando o pai acordou bem mais tarde, e subiu correndo para a marcenaria ao ver a grade aberta, foi impossível restituir-lhe a vida por causa da quantidade de sangue perdida. O pai correra com ele para o hospital, mas, mesmo assim, todas as doações da cidade não conseguiram restituir-lhe a vida...


Sentindo grande misericórdia pelo casal, eu mencionei que o menino estava presente. O rapaz ficou lívido, também ansioso, fazendo várias perguntas, todas respondidas inesperadamente certas, pelo menos para mim, aliás. E o menino pedia, ainda, que ele e a mãe deixassem de brigar, que nenhum dos dois fora culpado pelo acidente e que deveriam se amar muito, talvez gerando outra criança que seria ele próprio, se reencarnasse de novo.

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