Asas como se fossem pontas de dedos.

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13 de junho de 2012 

Nossas asas não nos beatificam ou nos transformam em seres carismáticos. É, justamente, o contrário! Elas parecem calombos nas costas, tal qual tumores malignos, sei lá; elas entortam os nossos corpos e nos fazem mais estranhos do que já somos. Há pessoas que notam a deformidade, não a compreendem, e nos olham com expressões ruins, de escárnio, por exemplo. O escárnio, entretanto, é um tiro à queima-roupa, fere a alma, destroça a dignidade, uma das poucas coisas boas que ainda preservamos nessa nossa existência insensata! Pode até ser que o restolho da maldade dessas pessoas pressente o bem que há em nós e o escárnio é o jeito como elas, em sua maldade e ignorância, encontram para nos apartar de sua proximidade...

Sinto um esgar de nojo por essas criaturas toscas, sussurro continuamente minha canção de palavrões... porque, essas pessoas, de algum modo, elas sabem como nós somos e o que fazemos para ajudar os outros e não possuem qualquer misericórdia... gente maldita...

Fernando, um amigo da polícia rodoviária, telefonou desesperado, dizendo que Isaura, sua mulher, estava prestes a se matar. As ruas e avenidas de Boa Vista se espalham pelo cerrado na forma de um leque. São largas e cumpridas. Pelo fato da maioria das casas estarem instaladas em terrenos amplos, cercadas de árvores altas, a impressão que se tem é a de que tudo fica longe. Por isso eu corri feito um louco do Pricumã, onde fica a DPF, até a casa de Fernando e Isaura, no Caçari (do outro lado da cidade próximo ao rio Branco), o mais rápido possível naquela hora de trânsito apertado, mais ou menos sete e meia da manhã. Fernando é um sujeito com os pés no chão, devidamente enérgico, como se deve ser em nosso trabalho. Isaura, uma pessoa doce, encantadora.

O 'circo' já estava montado quando cheguei na casa deles: vizinhos espiavam, viaturas cercavam a casa, as luzes ligadas, vozes saíam dos rádios, os gritos de Fernando e do Tenente Marcelo (como eu viria a saber em instantes) assumiam tons de súplicas desesperadas! Isaura estava trancada no banheiro com a arma de Fernando, ela gritava lamentos tão profundos que meu coração se desfez em lágrimas de sangue, pois só assim descrever o que senti.

Eu entrei na casa com Francisco, um conhecido da Polícia Civil. Fernando estava na porta do banheiro do quarto do casal, firme como uma rocha, junto a outro policial de maneiras tranquilas, Tenório, um sargento especializado em situações de conflitos. Outros homens estavam no corredor. Danilo – nós jogávamos futebol aos domingos, quando dava – comentou que os dois filhos do casal haviam sido levados pelos avôs que moravam ali perto. Fernando me abraçou e em voz baixa pediu que os ajudassem.

- É uma responsabilidade enorme, cara! – Comentei.

- Mas ela vai te atender, Pedro. – Insistiu Fernando. ­- Ela te adora, chefe!

Pedi a todos que saíssem, até mesmo Fernando, e que fizessem silêncio!

- Deixa o corredor livre, gente, manda deligar as sirenes. O mais rápido possível, por favor!

Minutos depois, o silêncio se instalou em redor da casa. Eu respirei fundo, deixei minhas asas quietas, cheguei na porta do banheiro e sussurrei:

- Querida, sou eu, o Pedro. Eu vou me encostar por aqui mesmo e não vou sair, independentemente da decisão que você tomar. Antes disso, Mônica mandou um beijo no coração, que os pensamentos dela estão aqui com todos e que você precisa entregar a encomenda da roupa de cama, Isaura! Ela está louca para ver o bordado que você escolheu! Acho até que arrumou mais uma cliente! Sabe a Jussari? Da Educação? Ela quer um conjunto de toalhas, bem chique e caro, tá?

- Eu ainda não terminei a colcha, e nem vou terminar, Pedro! ­– O grito de Isaura se transformou em um choro convulsivo. Eu a deixei chorar à vontade. Suas lágrimas e os gritos foram se amansando, amansando, até que ela destrancou a porta, sem abri-la, entretanto.

- O que aconteceu, Isaura? – Perguntei.

- É... eu...

- Abre a porta um pouquinho e conta para mim, bem baixinho. Ninguém vai escutar, sabe? Estão todos lá fora. O Fernando também.

Isaura girou a maçaneta e abriu uma frecha na porta. Ela sentava-se no chão, de modo a me ver, o rosto molhado de lágrimas desesperadas, a pistola de Fernando entre as mãos. Seus olhos... como posso descrever o horror, o pavor, o nojo de si própria? Por qual motivo?

- Fala só o necessário, querida. - Eu sugeri e ela explicou:

- Eu estive com o Satanás durante a noite, Pedro. Eu entreguei meus filhos para ele para que minha família tivesse paz. Nós fizemos um acordo judicial. Havia até um papel assinado por mim, que ele endossou com uma marca de sangue. Mas eu não fiz isso, Pedro! Eu não quero ter feito isso! Eu quero me matar para ir atrás desse monstro e dizer a ele que eu, jamais, faria isso, sob qualquer hipótese. Que eu prefiro serrar meu corpo, membro a membro, e entregar a ele para que poupe os meus filhos.

- Se você se matar, querida, não vai conseguir chegar perto dele. – Eu disse com calma, bem baixinho. - Suicidas ficam no lugar onde se matam por um tempo igual ao tempo que teriam de vida, sabe? Depois, do jeito como tu és? Anjos viriam te buscar e protegeriam teus filhos. Esses seres das trevas vivem procurando as famílias de policiais para isso mesmo: para desequilibrar a casa da gente!

- Meus filhos, Pedro... eu tenho de fazer alguma coisa por eles!

- Fazer nada é fazer a melhor coisa, sabe? Essas criaturas não merecem holofotes, Isaura, e é só isso o que eles querem. Chamar a atenção para que não se desvaneçam nas sombras onde vivem. Querem que alguém se lembre de sua existência. E não existem demônios. Eles são apenas as almas de homens muito ruins. Quando eles surgem é porque talvez também estejam cansados do mal. Chamam a atenção fazendo o mal pois é só o que sabem fazer. Vamos pedir que alguma luz do céu venha até ele e que possa trazê-lo de volta a paz. Então, retorne ao teu equilíbrio. Fernando só é o policial que é por tua causa! Só por tua causa. Aliás, se não fossem as nossas esposas, o que seria de nós?

Silêncio... Três horas se passaram. Isaura deslizou para os meus braços, entregando a arma. Ela estava visivelmente deprimida e eu fazia um esforço enorme para deixar as minhas asas quietas, porque, uma coisa era o anjo falando, a outra seria o policial Pedro entrar em ação contra um bandido trevoso filho da puta.

- Antes de estar com Fernando, você vai tomar um banho, querida. – Sugeri, com ela em meus braços. - A roupa nem está assim tão suja assim, então, dá para vesti-la. Tome uma chuveirada, está bem! Arrume o cabelo! Nós, policiais, gostamos de nossas esposas firmes e lindas como tepuis.

Dez minutos depois Isaura saiu do banheiro, refeita, mas os olhos... puta que pariu... Eu tinha que dar um jeito naquilo... puta que pariu... pela primeira vez eu quis aproveitar o fato de ser um anjo policial para encontrar aquele filho da puta nas trevas e cobri-lo de tanta porrada que ele iria desejar morrer mais do que já estava morto.

À noite eu o encontrei no buraco onde vivia. Eu não lhe perguntei nada e nem lhe dei tempo de falar, minhas asas se abriram e eu usei toda sua luz para estraçalhá-lo, murro após murro, murro após murro. Então, eu o segurei pelos braços, rodei o seu corpo acima do meu e o lancei de encontro à escuridão. Eu não sei onde ele foi parar! Nem quis saber? Se alguém se importa? Que continuem a orar!"

Ao retornar daquele lugar repleto de seres tão deploráveis quanto aquele suposto Satanás, eu fiquei sobre o telhado, na postura de bicho empoleirado, até o dia clarear. Eu desfiava minha ladainha de palavrões, fortalecendo a coragem para enfrentar mais uma jornada de trabalho, porque, na verdade, eu sequer queria me mover. Mônica deitava-se em um colchonete no chão, no jardim abaixo do telhado onde eu estava, vigilante, amorosa como sempre. Ela e o nosso filho. Horas depois, mais ou menos sete horas da manhã, Fernando ligou avisando que Isaura estava bem, mas que ela e as crianças iriam passar uns dias com a família em Alto Alegre, cidadezinha próxima à Boa Vista, com os parentes.

Eu senti uma satisfação enorme de ter sido um anjo tão truculento quanto eu, o delegado da DPF, era. E daí? Quem iria me censurar? Deus? Ora? Deus não adora a violência de seus anjos?

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