Anjos são cachorros de Deus!

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Eu estou trancado no quarto onde guardamos as nossas roupas. Eu não quero me ver, não quero me encontrar, não quero saber onde estou, se vivo ou não... Eu queria morrer de uma vez! Minha mulher me chama, a voz sempre mansa e tranquila. Nunca se desespera essa mulher? Por nada no mundo? Ela me chama, mas eu só penso em escrever, mesmo no escuro e no calor dos infernos aqui dentro. Preciso registrar o que aconteceu durante a noite para não perder a sanidade ou, então, para que algum advogado me ajude a processar Deus por ter enfiado essas asas malditas nas minhas costas.

Quando acordei, mais ou menos à meia noite, eu estava agachado na ponta do telhado tal qual um bicho empoleirado, as asas fechadas, materializadas, enormes. Não faço ideia de como fui parar no telhado! Não sou sonâmbulo, a porta para o forro está emperrada há meses, a escada que temos não é alta para alcançar qualquer ponta do telhado. Nem pelo muro dá para subir, nem nada!

Ao acordar, minha cabeça foi invadida por lembranças do que aconteceu enquanto dormia naquela posição de bicho empoleirado no telhado: Eu estive em um país estrangeiro, numa pequena cidade onde a maioria de seus moradores festejavam o término das obras da grande praça em redor de sua linda mesquita. Em meio a toda aquela gente, cinco homens vestidos com roupas negras gritaram frases de ordem e explodiram as bombas atadas aos próprios corpos.

Enquanto as bombas explodiam, minha percepção de anjo acompanhou a tragédia como que em câmera lenta. Lembro que fiquei atônito presenciando os efeitos da explosão, os corpos sendo dilacerados, as pessoas caindo sem a cabeça ou com a metade do corpo destruída, olhos sem vida, muitos com queimaduras na extensão de todo o corpo, sangue queimando na mesma hora em que saía das feridas, pedaços de crianças espalhados, meramente jogados, vidas as quais, para aqueles homens-bomba, significavam apenas o reles preço com o qual se paga as taxas da miséria política. Famílias desfeitas, casais e sua história emudecida para sempre, rapazes e moças e sonhos desfeitos, crianças, especialmente... mais tarde eu saberia que nenhuma criança escaparia ilesa do atentado.

Quando a câmera lenta cessou, e os sobreviventes deram conta do atentado, o desespero, os gritos de dor, de aflição e medo foram avassaladores e isso somado ao barulho urgente das sirenes das ambulâncias rápidas em socorro às vítimas. Mas não somente elas vieram. Vários seres iluminados, anjos translúcidos, começaram a transitar em meio à multidão, ajudando os feridos com luzes arrancadas de mim, causando uma dor tão profunda que meus gritos se misturavam ao terror ecoando pelas imediações. Essas luzes também eram usadas para enviar as almas dos mortos para o céu. Só eu ofertava as luzes, pois era o único anjo presente.

É por isso que me vejo neste inferno particular contra os meus dons, e creio que nem mesmo um milagre me faria mudar de ideia. Fatos estranhos sempre acontecerão: doações de fluídos, vidência, ver e ouvir e sentir, mas nada que se assemelhasse àquela noite. Os gritos dos feridos e mortos viravam facas sendo enfiadas em meu corpo, formando profundas feridas e de lá saiam luzes coloridas; cada cor, em particular, destinava-se a um ferido em especial. Os seres translúcidos, ao auxiliar os mortos na passagem - ou a suportarem os ferimentos -, tiravam suas almas de seus corpos e as enviavam para o alto onde outras criaturas fluídicas as resgatavam, isso depois de manipularem as luzes que brotavam de mim, como a mais cristalina de todas as águas, para ajudá-los. Nós não éramos vistos pelos acidentados, somente alguns, em estado febril de dor próxima à morte, voltavam os olhos assustados em nossa direção. Alguns desmaiavam ao nos ver, outros se negavam a ver!

Eu permaneci naquela posição de bicho empoleirado enquanto aquelas criaturas iluminadas se entregavam para evitarem mais mortes... muitos dos feridos não resistiam, eram levados para o céu borrado pelo fogo... Quando tudo acabou, quando todos os feridos e mortos foram atendidos, eu acordei em cima do telhado, na posição de pássaro vigilante! Eu fui escorregando sobre as telhas, segurei a calha com cuidado, pulei sem sair ferido e me escondi no guarda-roupa, comecei a rabiscar e a cortar as folhas do diário, escrever está me ajudando...

Eu não quero sair do guarda-roupa. Minha mulher bate na porta com força, tenta abri-la, sem sucesso, tal como eu a prendo com minha vontade férrea de anjo. Eu... Não!

Cotidiano de um AnjoOnde histórias criam vida. Descubra agora