Capítulo 13.

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Emily ajustou os óculos de segurança nos olhos e inclinou-se sobre o vaso de porcelana. Apesar de suas falhas, ainda era um lindo objeto.
Ela estudou os rebites de metal com os quais um falecido restaurador chinês tinha unido a peça quebrada. Desmontar, limpar e restaurar novamente o vaso azul e branco seria um trabalho de longas horas.
Do lado de fora estava uma manhã de verão sem nuvens, e a iluminação que entrava pelas grandes janelas era perfeita para que ela visse os detalhes de seu trabalho sem precisar da lente de aumento.
Emily trabalhou com extremo cuidado e atenção. Com a teoria de que se aprendia fazendo, James a deixara fazer alguns trabalhos de rebite, usando as mesmas técnicas praticadas centenas de anos antes da invenção da resina, de modo que ela entendesse melhor o processo completo. Ele tinha sido mais rigoroso e exigente com Emily do que com outros empregados, mas ela respeitara o propósito do avô. Era Emily quem carregava o nome da família, e quem deveria manter a reputação dos Quest.
E ela arriscara tal reputação dois anos atrás. Embora não tivesse sido seu o trabalho de má qualidade que ameaçara manchar o nome Quest, Emily fora responsável por deixar Conrad Nichols trabalhar no estúdio. Havia ficado tão encantada pelo rosto bonito e jeito charmoso do rapaz que fracassara em notar que ele não possuía habilidades à altura das referências dadas no seminário do museu onde eles haviam se conhecido. Quando ela percebeu que o trabalho de Conrad não se igualava aos padrões de seu avô, era quase tarde demais para impedir um escândalo.
O que tornava ainda mais importante fazer justiça ao nome Quest agora, pensou, enquanto continuava a trabalhar com os rebites, parando de vez em quando para checar os itens que estavam de molho ou secando.
Já fazia mais de uma semana que estava instalada com Peter e, embora estivesse tudo bem dentro do estúdio, a vida fora daquelas paredes estava difícil. Ethan havia passado quatro dias lá, os horários de trabalho irregulares e apenas um compromisso noturno, intercalados com a missão de perturbar Emily com sua presença e constantes ofertas de "ajuda". Os outros compromissos que ele alegara aparentemente tinham sido cancelados, deixando-o livre para jantar com Emily e Peter todas as noites e depois, na sala, dominar o curso da conversa até cansar o tio e mandá-lo sutil-mente para a cama.
Para alívio de Emily, ele finalmente partira para South Island, mas havia retornado na noite anterior sem aviso, pegando-a desprevenida quando ela e Peter estavam vendo fotografias de família, com Emily particularmente interessada nas fotos de infância dos irmãos West.
Ela não tinha razão alguma para se sentir culpada, e fingiu naturalidade quando Ethan sentou ao lado deles no sofá, a coxa musculosa roçando-lhe o vestido de verão, enquanto se inclinava para a frente a fim de olhar o álbum aberto sobre a mesinha de centro.
Exceto que...
Exceto que, às vezes, o jeito como Peter falava e a olhava a fazia sentir-se desconfortável.
Não de uma maneira sexual, nunca isso, mas como se estivesse esperando alguma coisa dela. Algo que o relacionamento deles prometia, mas que ainda não tinha acontecido.
Na maior parte do tempo, ele mostrava-se feliz com o arranjo atual, apreciando o fato de ter pessoas ao seu redor na casa.
Contudo, de vez em quando, sem motivo aparente, parecia deprimido, e ela o pegava olhando-a com uma estranha expressão esperançosa no rosto. E não podia deixar de pensar que alguma coisa estava errada, apesar de não ter idéia do quê.
Quando tirou o último rebite e cautelosamente virou o vaso para expor a segunda rachadura, uma pontada na nuca avisou-a de que estava trabalhando mais tempo do que percebera. Tirou os óculos de proteção e endireitou a coluna, girando os ombros para aliviar a tensão muscular.
Engasgou quando mãos quentes tocaram o local dolorido e começaram a massageá-la.
Inclinando a cabeça para trás, viu o rosto de Ethan e sentiu a familiar aceleração das batidas do coração, que acontecia toda vez que o via inesperadamente.
- Eu não ouvi você chegar - murmurou ela, abalada.
- Isso não me surpreende. Você estava muito concentrada.
Subitamente percebendo que sua cabeça estava descansando sobre o estômago reto dele, Emily se endireitou, saindo de baixo das mãos extremamente habilidosas.
- Obrigada, estava com torcicolo - disse ela. - Geralmente, faço um intervalo a cada meia hora, porque se você não consegue mover o pescoço enquanto está fazendo um trabalho delicado...
Emily percebeu que estava falando demais quando o viu sentar no outro banco, apoiando o cotovelo na mesa ao lado do caderno, e olhá-la com uma expressão de zombaria. Ele estava vestido de forma casual com calça caqui e camiseta pólo azul-marinho, a qual contrastava com os brilhantes olhos azuis. Não tinha se barbeado, e a sombra escura no queixo adicionava um aspecto rude às feições aristocráticas. Parecia preguiçoso, mas irradiava uma resolução oculta, o que, na experiência de Emily, era mau sinal.
- Há quanto tempo está aí? - perguntou ela, limpando as ferramentas que usara e pensando que pelo menos estava apresentável, os cabelos recém-lavados caindo em cachos sobre os ombros, o rosto sem manchas embaraçosas.
- Algum tempo - replicou ele de modo vago. - Você deve ter muita paciência para conseguir trabalhar tão devagar. Nunca sente vontade de apressar o processo?
Os olhos azuis de Emily se arregalaram em horror, e ele ergueu as mãos num gesto de rendição.
- Entendo isso como um "não".
- Se você fica impaciente, pode causar mais danos do que bem. Não há caminhos mais curtos para uma restauração adequada.
- Admito que errei - murmurou ele. - Você geralmente trabalha sábado?
- Trabalho sempre que há trabalho disponível. Essa é uma das grandes vantagens de se trabalhar por conta própria e de se ter um estúdio à mão - replicou Emily. - Gosto do que faço, portanto, não me importo se precisar ficar no estúdio sete dias por semana.
- Então, seu trabalho é seu prazer, e seu prazer é seu trabalho? - Por que aquilo soava indecente saindo dos lábios dele? - Ou está apenas tentando impressionar a todos com seu trabalho delicado? Ou o usa como uma desculpa para se esconder aqui, esperando evitar o inevitável - acrescentou Ethan sedosamente.
- O que é inevitável?
Os cantos da boca dele se curvaram num sorriso. -Eu.
Emily lutou para que o rubor não lhe subisse às faces.
- Tenho muito terreno perdido para recuperar. Diferentemente de você, não possuo empregados para delegar serviços quando decido tirar um tempo de folga.
- Hum. - Ele voltou-se para o caderno aberto de Emily, folheando as páginas com anotações e desenhos, nas quais ela mantinha uma descrição meticulosa de cada item trabalhado e de cada passo do tratamento com as peças. - Você parece fazer muitas anotações detalhadas.
Era a sua bíblia e, felizmente, ela tinha o hábito de levá-la para a cama, a fim de rever as anotações e fazer planos para o dia seguinte. Na noite do incêndio, os três volumes estavam no quarto, além de alguns de seu avô, enquanto se preparava para o trabalho que chegaria no dia seguinte. E estas tinham sido as únicas coisas que pegara antes de sair da casa. Os outros cadernos de James Quest, um registro inestimável de uma vida de experiência, haviam queimado nas prateleiras do estúdio, com outros livros e textos, e nada poderia separar tal perda, mesmo que a companhia de seguros aceitasse que possuíam um valor monetário real.
- Preciso fazer isso - respondeu ela. - Você construiria uma casa sem uma pesquisa do local ou sem uma planta? Se houver alguma dúvida do proprietário sobre o modo como está sendo feito, ou sobre um trabalho que necessita ser refeito, é essencial ter tudo anotado.
Ethan voltou à página do vaso em que ela estava trabalhando, manuseando o bolso de papel que continha as fotos que Emily produzira com a câmera digital e a impressora que achara em uma das prateleiras do estúdio... um outro exemplo da generosidade suspeita de Peter, supunha.
- Ouvi dizer que meu irmão de má reputação apareceu - comentou ele preguiçosamente.
Ela não foi enganada pela observação improvisada.
- Sim, coincidentemente no dia em que você partiu - falou com sarcasmo. - Ele chegou de malas com uma história sobre ter precisado emprestar o apartamento para um astro de cinema que queria ficar incógnito, para fazer um comercial para sua agência de publicidade.
Ethan olhou para o escalpelo que ela estava lustrando.
- Na verdade, acredito que ele alugou o apartamento por um preço exorbitante. Dylan está sempre aberto a uma oportunidade de ganhar dinheiro fácil.
- Quer dizer que você não teve nada a ver com a súbita decisão dele de vir aqui passar uns dias com o velho tio? - provocou Emily, recolocando o escalpelo de volta na bancada. Na verdade, tinha achado Dylan West divertido. Charmoso e de boa aparência, era obviamente um oportunista feliz que gostava de saborear a vida sem se aprofundar em significados e motivos. Nenhuma das perguntas ou brincadeiras dele provocava o tipo de antagonismo instantâneo que um mero arquear da sobrancelha do irmão mais velho podia induzir. Dylan também tinha uma vida social ativa, e saía todas as noites, entrando na garagem com seu Porsche nas primeiras horas da manhã. Então, se Ethan pretendera colocar o irmão como um tipo de espião, tinha fracassado no plano, pensou ela, maliciosamente.
- Devo ter falado sobre você de um jeito que despertou a curiosidade dele - murmurou Ethan, escolhendo as palavras com cuidado. - Dylan é impulsivo. Gosta de pensar em maneiras de me irritar. Emily o fitou.
- Pelo menos, ele não fica me seguindo, tentando me pegar em flagrante com o seu tio!
- É isso que eu faço? - Ele estendeu as longas pernas à frente.
- Com certeza. Pergunto-me se você não fica rondando os corredores de noite, ouvindo o piso estalar.
- Esta casa foi construída à prova de som - disse ele sorrindo. - Mas às vezes tenho um pouco de insônia, então, não se surpreenda se me encontrar no meio da noite por aí.
- Não tem perigo - murmurou Emily. - Depois que durmo, não me mexo até o dia seguinte.
- Verdade? - Ethan arqueou uma sobrancelha. -Pensei que você fosse ativa na cama. Que desconcertante para seu amante...
- Não tenho amante - interrompeu ela, ignorando o calor que sentiu na boca do estômago. - Pelo menos não nesta casa!
- Entretanto...
Emily suspirou, frustrada.
- Você nunca desiste, verdade? Não admite que pode estar errado. É o homem mais cínico e desconfiado que j á conheci!
- Faz parte do meu charme - respondeu ele, levantando, e então mudou de assunto: - Sabia que o relatório do avaliador profissional chegou?        /
- Eu sabia que estava para chegar. - Ela foi para a pia, a fim de colocar luvas de borracha e verificar o prato que estava de molho em água sanitária. - Fui eu quem pediu para ser feito, afinal.
- Só depois que falei que eu ia sugerir ao tio Peter. -Mas você não fez isso, fez? - apontou Emily,
lavando o prato e colocando-o numa outra solução. -Não pareceu acreditar quando eu disse que gostaria que as peças de Rose fossem avaliadas, então, insisti nisso, de modo que você não tivesse mais motivos para me acusar sem provas. - Tirando as luvas, jogou-as dentro da pia.
- Não está interessada no que ele tem a dizer?
- Prefiro esperar pelo relatório final.
- Ele diz que há pelo menos seis itens que são, à primeira vista, de procedência suspeita.
- Verdade? - Emily lavou as mãos e as enxugou. Ethan parou atrás dela.
- Você não parece muito preocupada.
Ela virou-se, tentando ignorar a proximidade perturbadora do corpo forte.
- Não estou - murmurou, mantendo a voz calma. - Rose tem 230 peças individuais, a maioria das quais comprou ao redor do mundo, e nem sempre de negociantes respeitáveis. Eu ficaria até surpresa se alguns dos itens não fossem falsos. Isso não significa que haja fraude envolvida.
Emily viu a frieza nos olhos dele e desesperou-se para fazê-lo entender.
- Até os melhores especialistas podem ser enganados, e Rose era apenas uma amadora talentosa, que comprava peças. O valor monetário não era o que mais interessava à sua tia, e tudo se tratava das emoções associadas aos objetos que encontrava. É claro que uma avaliação deve ser feita para propósitos de seguro, ou se a coleção fosse vendida, o que não creio que Peter faria. Portanto, identificar algumas peças duvidosas não é um desastre. A menos que você esteja preocupado com o valor de sua futura herança. Ele ignorou o comentário sarcástico.
- Você não notou nada de errado nos itens? O orgulho a fez erguer o queixo.
- Está me acusando de alguma coisa?
- Só estou perguntando.
- Sem saber que peças estão envolvidas, eu não poderia dizer - replicou ela com dignidade. - Vi a coleção inteira, mas não examinei tudo com um olho para autenticação. Restaurei apenas alguns itens. Mas se Mickleson acha que a origem é duvidosa, acredite que a pesquisa dele vai confirmar os dados iniciais. Ele tem faro para esse tipo de coisa.
- Você o conhece pessoalmente?
- Somente por reputação. Ele é o melhor do país. Por isso eu o indiquei para Peter. Só me surpreende que ele tenha feito isso tão rápido. Tem a agenda cheia por meses.
- Eu paguei o dobro do preço pedido. Emily cruzou os braços em desgosto.
-Não é de admirar que ache que todos estão à venda... talvez para você estejam.
- Como mencionou, ele tem a reputação de ser o melhor, e nunca me contento com menos. - Então, mais uma vez, Ethan mudou de assunto: - Sei que houve alguns rumores sobre a reputação de seu avô no passado. Na época em que nos encontramos pela primeira vez, não foi?
Emily descruzou os braços e cerrou os punhos na defensiva.
- Isso não tem nada a ver com aquilo. E não quero discutir o assunto!
- Uma pena, porque teremos essa discussão, quer você queira ou não. Os rumores eram verdadeiros? Que o nome de James Quest não era mais uma garantia de trabalho impecável? Foi por isso que os negócios quase faliram no ano passado?
- Nem vou me dignar a responder.
- Prefere que eu mesmo crie as respostas? - insistiu ele. - Tudo o que tenho a fazer é reunir dados para montar um quebra-cabeça. Pagar alguém para fazer uma investigação, descobrir se havia mais alguém envolvido...
Conrad, pensou ela com um tremor interno.
- Você não tem o direito!
- Emily. - Ele aproximou-se para tocar-lhe o ombro e ela recuou, batendo o cotovelo na vasilha sobre a pia e fazendo o prato se chocar contra o plástico.
- Olhe o que você me fez fazer! - exclamou ela, parando o movimento do prato. - É perigoso ser distraída por conflitos pessoais dentro do estúdio.
- Então vamos lá fora, no jardim, onde não há perigo de quebrar nada precioso, exceto nós mesmos, é claro.
Quando Emily abriu a boca para protestar, Ethan falou, com intenção implacável:
- Temos alguns assuntos não terminados... de dois anos atrás. Até que isso seja esclarecido, tenho todos os motivos para questionar sua honestidade. A verdade vale para os dois. Se quer minha confiança, então, em algum momento, tem de confiar em mim. E esse momento é agora. Está na hora de parar de se esconder, Emily. Ocultar a verdade é o mesmo que mentir, e mentiras têm um jeito perverso de ferir pessoas.
Ela hesitou, sabendo que aquilo era verdade, mas ainda dividida por velhas lealdades.
- O segredo, seja ele qual for, vai aparecer - prometeu Ethan. - Prefere que eu saiba por você, ou por alguém que pode distorcer os fatos?
Ela pensou sobre Conrad novamente. Como ele adoraria expor a sujeira, se achasse que poderia sair ileso na história.

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