Capítulo 24

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Leoric

Leoric se viu sozinho, estava escuro, e ele não conseguia enxergar nem ao menos a si mesmo. Ele não tinha ideia de onde estava. Mas nada daquilo importava quando sentiu o perfume familiar. Não é possível, ele pensou. Ela estava morta.

- Leoric. - Ele escutou a voz de Selene chamar.

- Lin, eu não entendo... - Leoric começou, buscando a origem da voz na escuridão.

- Está chegando a hora, cavaleiro. - Ele escutou. - Infelizmente terá que lutar por mim novamente.

- Estou ligado a você pelo meu sangue. Sou seu servo, você me fez seu cavaleiro, libertadora.

Leoric se ajoelhou mais uma vez, como estava acostumado a fazer inúmeras vezes em cerimonias especiais na Capital e também em Agalesia. Assim que seus joelhos encontraram o chão, sentiu uma mão fina e macia tocar-lhe o rosto gentilmente. Leoric suspirou e fechou os olhos, sentindo seu coração saltar.

- Senti sua falta, Selene. - Leoric falou sentindo uma lágrima escapar-lhe os olhos.



Leoric despertou aos poucos. A medida que recuperava a consciência sentia mais forte a dor latejante em seu abdome. Ele tentou se lembrar de onde estava. E os acontecimentos anteriores passaram rapidamente por seus pesamentos. Ele estivera desacordado, e não tinha noção de quanto tempo havia se passado. Ele tinha sonhado com Selene, lembrou de repente, causando um aperto no seu coração.

Ele puxou para baixo as peles que cobriam seu peito nu, o ferimento causado pela faca dos mercenários quando ele tentou, mesmo drogado, resistir a captura, estava tratado. Alguém tinha estancado o sangue limpado, aplicado as ervas cicatrizantes, parecia estar curando bem. Estava incrivelmente frio mesmo com a lareira da cabana acesa. Leoric olhou em volta. Ele conhecia bem aquela cabana, já que ele mesmo a tinha construído há alguns anos.

Antes que pudesse pensar no que iria fazer a seguir, a porta se escancarou deixando o ar gelado entrar, esfriando ainda mais o quarto. Uma jovem magra, com cabelos enormes e negros passou pela porta. Ela estava enrolada em pedaços de peles e couros de animais, carregava um arco e flechas e uma bolsa rasgada. Provavelmente ela devia ser a pessoa que tinha o resgatado dos mercenários. Leoric a fitou, enquanto ela descarregava a bolsa na única mesa do lugar.

- Olá. - Ele falou.

A jovem imediatamente armou uma flecha em seu arco, apontando para ele. Ela não tinha nenhum tipo de expressão em seu rosto. Estava indiferente, e como um animal, Leoric sentiu que faria de tudo para sobreviver.

- Não vou machucá-la. - Leoric falou. - Não poderia nem se quisesse, com esse ferimento.

Ele viu a jovem analisar seu rosto por mais um momento antes de abaixar o arco, e pegar uma faca que tinha acabado de tirar da bolsa. Ela andou devagar em sua direção, com a faca na mão. Leoric se remexeu na cama inseguro, por não poder ler as intenções da garota em seu rosto apático. Ele tentou se acalmar, ela não o mataria logo depois de o salvar, ou mataria?

Assim que ela chegou perto o suficiente dele, levantou ligeiramente a faca em direção ao seu peito. Leoric gelou, mas algo o impediu de se proteger. Ele confiava nela de uma forma que não poderia explicar. Ele tentou buscar a energia da garota. Ele não conseguiu sentir nada além de vazio. Mas ela deveria ser d'O Antigo. De que outra forma a Floresta a deixaria ficar ali?

Ela abaixou as peles lentamente, e com o auxílio da faca, cortou as ataduras que cobriam seu ferimento, despejou algum emplasto, que tirou de uma folha dobrada que trazia em sua outra mão fechada, sobre o corte em sua barriga. Uma dor aguda subiu pela parte baixa de sua barriga, fazendo-o gemer.

Ele a observava trabalhar em seu ferimento sem dizer uma palavra, se contendo para que ela não visse sua dor. Será que ela sozinha tinha lidado com os mercenários?

- Obrigado. - Leoric sussurrou, tentando recuperar a voz.

Ela apenas balançou a cabeça e continuou a tratar seu ferimento.

- Me diga seu nome, para que possa agradecer propriamente.

A desconhecida o encarou pela primeira vez, mas logo desviou o olhar. Ela tinha olhos violeta, assim como os de Selene. Uma cor comum para os descendentes das antigas raças, lembrou Leoric. A garota tinha o Antigo em si, isso já se tornara uma certeza.

- Seus olhos... - Ele tentou falar, mas o ferimento na barriga reclamou pelo esforço.

Leoric a viu cobrir novamente o ferimento em seu dorso e dar as costas para ele, sentando se do outro lado da cabana. Ela pegou uma faca e um coelho, que parecia recém-morto, e começou a limpar sua carne.

- Deve ter sido difícil... - Leoric começou, buscando fôlego. - Caçar.

Ela nada respondeu, sem desviar os olhos do que estava fazendo.

- Quem mais vive aqui? - Ele perguntou, sentindo seu ferimento latejar. - O inverno...

Ela apenas balançou a cabeça negativamente. Vivia sozinha ele presumiu.

- Ninguém?

- Ninguém. - Ela finalmente respondeu.

A jovem virou de costas para ele e continuou seu trabalho com o coelho. Leoric não perderia a oportunidade de continuar a conversa. Ela era, ainda, apenas uma criança, como conseguira, ainda que com O Antigo dentro de si, morar nesse lugar inóspito, e por diversas vezes, cruel? Leoric lembrou de seus sequestradores, não conseguia se lembrar o que acontecera com os dois.

- Os mercenários, eles...

- Estão mortos. - Ela disse simplesmente.

Leoric fitou o rosto da jovem, atônito. Tirar uma vida não parecia problema para ela. Ele sabia bem como era aquilo. Sabia bem no que a perda e a dor transformava uma pessoa. Ele mesmo matara inúmeras pessoas pela sua própria tragédia, pela simples necessidade de sobreviver. Conhecia aquele olhar perdido, sem emoção.

O abrigo estava iluminado pela luz de uma pequena tocha pendurada em um dos cantos. Do lado de fora, vozes de espectros entoando mantras na língua das raças antigas fizeram os pelos de sua nuca arrepiarem.

- Eles nunca chegam perto. Não se preocupe. - Ouviu a jovem dizer, ao notar a sua agitação.

- Eu sei. - Ele disse. - Espectros não atacam os que tem o Antigo em suas veias.

- Espectros?

- Sim.

- Então são isso que são. Costumava chamá-los de Murmurantes.

- Um nome bastante apropriado. - Falou Leoric. - Já o ouvi antes.

Ela assentiu, espetando a carne já limpa em um galho de madeira lixado, e o levando em direção a lareira.

- Qual é seu nome? - Leoric perguntou novamente.

- Lydia. - Ela disse, sem olhá-lo.

- Prazer em conhecê-la, Lydia. - Ele falou. - Me chamo Leoric.

A Canção do Antigo (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora