Dóiteáin

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Eu sempre fui fascinado com a adaga. Era um fascínio diferente, no entanto: Ao mesmo tempo que desejava tê-la com todas as forças, como se sentisse que era meu direito, também sentia medo dela.

Às vezes, ficava horas sentado no sofá a olhando exposta no suporte em que meu avô a colocara. Quanto mais tempo ficava ali, mais as vozes se acalmavam em minha cabeça e sentia-me estranhamente anestesiado. Exceto por uma pequena pontada em meu peito quando chegava perto demais, no mesmo lugar de uma estranha marca de nascença.

Eu a pedi a meu avô, várias vezes. Ele apenas balançava a cabeça, me olhava de forma triste, e pedia que não ficasse tanto tempo perto dela.

Quando ele morreu, minha avó veio deixar um pacote em minha casa. E ela estava ali, enrolada em um pano aveludado. Por anos só conseguia dormir com ela por perto. Por mais que a dor em meu peito sempre parecesse um pano de fundo, a sensação de anestesia, silêncio e apatia parecia cessar a dor e os gritos em minha cabeça.

Eu nunca soube se isso era uma coisa boa ou ruim.


FUMAÇA. ERA TUDO O QUE COBRIA SUA VISÃO. SUFOCANTE, QUENTE.

E então fogo.

Labaredas que lambiam tudo ao redor, o som crepitado da madeira, ruidosa, anunciando a destruição.

Abriu os olhos azuis que fechara apertados, como se para confirmar que aquilo era real e não um pesadelo. Estava parado em meio a sua aldeia. Ou que ela um dia fora. Agora eram apenas casas flamejantes, gritos de pessoas correndo, o gado fugindo, cercados pelo fogo. O fogo que vinha do céu, em bolas gigantes cuspidas pela montanha.

Ele havia visto apenas quando as cinzas foram cuspidas, até o capitão o arrastar a força, tentando obrigá-lo a deixar tudo para trás. A abandoná-lo.

Chegara tarde demais. Estavam todos condenados. Todos mortos. Não havia como fugir. A água havia se tornado corrosiva, podia ouvir ao longe os gritos das pessoas que tentavam fugir nos barcos.

Forçou as pernas a correrem.

— Dan! — Gritou, tentando achar a cabeça morena de seu melhor amigo, em meio as pessoas desesperadas. Ele era o mais importante para si no mundo, sua única família.

Tossiu, sentindo o pulmão congestionado com a fumaça acinzentada. Bolas caiam flamejantes. Sabia que não iriam sobreviver, mas ainda queria vê-lo.

— Isaak! — A voz o chamou através da multidão e viu os olhos negros aliviados. Seu coração acelerou, mesmo naquela situação e correu até ele que saia de uma orla de casas incendiadas que ficava ao norte da montanha, sujo de fuligem, tossindo, sendo amparado pelo ombro por outra figura mais velha e conhecida.

— Dan! Seo! — Gritou correndo até eles. Os cabelos loiros estavam grudados de suor. Estava ferido, as roupas rasgadas, mas ainda assim corria como se sua vida dependesse disso. E dependia, sua vida estava ali sendo amparada por Seo.

Foi de encontro aos dois, que vinham na mesma pressa, mesmo ainda mais feridos, enquanto o caos reinava como o próprio inferno. Seo caiu com Dan no mesmo instante que o outro garoto os alcançava, se jogando no chão de joelhos não se importando em feri-los no cascalho, o abraçando trêmulo.

— Dan! — Repetiu o nome inúmeras vezes, passando as mãos no rosto do outro que parecia atordoado, removendo o cabelo negro suado de seu rosto para ver cada detalhe. Ficou horrorizado ao notar que sangue fluía de forma livre de um ferimento na cabeça dele, escorrendo pela face esquerda, pingando em sua camisa antes branca.

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