O SEGUNDO-PIOR-DIA.
Se a dor no meu coração podia aumentar, com certeza ela aumentou naquela manhã de outubro.
Não na manhã da morte dele, mas na seguinte a essa.
Mamãe me acordou bem cedo na sexta-feira – Como se eu tivesse conseguido dormir! –, pedindo, com toda simplicidade e desânimo do mundo, que eu me arrumasse logo porque todos já estavam lá em baixo, só nos esperando para começar.
Bem.
Começar o quê, exatamente, eu não sabia, mas me levantei mecanicamente e fui para o banheiro contorcendo o pescoço. Meu corpo todo estava doendo porque passei a noite virando de um lado para o outro na cama sem conseguir pregar os olhos, sem falar das minhas pálpebras, que ainda ardiam bastante por conta do choro do dia anterior. Quando me olhei no espelho, só me reconheci por causa do sinal de carne no lado esquerdo do meu queixo e pelas minhas sardas, fora isso, minhas olheiras estavam enormes, meus cabelos castanhos não tinham um fio sequer preso e meu aspecto era de quem não precisava de nada mais do que ficar na cama. Não parecia eu, mas era.
Fiz uma careta de tédio e liguei a torneira. Prendi o cabelo com a mão e me inclinei para lavar o rosto. Mamãe não costumava me tirar da cama por qualquer coisa e, nas devidas circunstâncias da morte de vovô, achei melhor obedecer, afinal, quando ela falou "todos" não parecia nenhum exagero da parte dela.
Levantei o rosto molhado e a careta de tédio continuava lá.
Pelos meus cálculos, demorou quinze minutos para eu conseguir ficar pronta. Coloquei um vestido cinza, porque o único preto que eu tinha, tive que usar no dia anterior, e enquanto eu fazia tudo isso, minhas lembranças dele pareciam um sonho ruim que meu íntimo queria, de alguma forma, me convencer que era mentira. Mas todas às vezes que, inconscientemente, eu recordava, meu estômago dava um nó, minha respiração parecia pesada e a careta voltava – junto das vozes, das cenas, dos choros, das condolências, dos discursos... Por Deus, era tudo muito real, muito sólido e impossível de ser apenas um sonho.
Tentando afastar tudo isso da minha mente, dei as costas ao quarto e saí pelo corredor silencioso da mansão, cada passo soando abafado no carpete, e, enquanto eu ainda descia a escada larga e exagerada feita de madeira, entendi o que mamãe quis dizer com "todos": praticamente a família inteira estava esperando na sala de reunião – com exceção do tio Alfredo e da tia Martine, pois eles sempre conversavam alto em qualquer lugar que estivessem e, como se não bastasse, sempre discutiam por coisas bobas. Eu não os vi à primeira vista, mesmo com todos quietos, então deduzi que, se os dois estivessem ali com certeza eu já os teria ouvido brigando.
Mas a sala estava num silêncio tétrico – meus saltos ecoaram clóc clóc altos nos últimos passos que dei na escada de madeira – e mesmo que alguns conversassem aos sussurros, e outros tomasse chá de pé ou pelos cantos, notei a mesma atmosfera fúnebre que estávamos mergulhados no fim de tarde da quinta-feira, pouco antes do vovô ser enterrado – essa era outra lembrança que parecia mentira para mim, mas eu sabia ser real.
Então as lembranças voltaram.
Tentei afastá-las observando todos em volta e notei que na sala também havia muitas cadeiras, que estavam enfileiradas como numa sala de aula, de frente para o birô mais ao fundo.
– Sente-se aqui, querida. – Ouvi a voz baixa de mamãe me chamar e, pelos olhos dela, pude notar que estivera chorando de novo. Mamãe era assim: qualquer mínima lembrança a fazia chorar e eu não podia culpá-la, a vontade em mim era de fazer o mesmo na esperança de fazer tudo voltar a ser como era antes. Ela fungou o nariz e acrescentou: – Já vamos começar, venha.
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Crônicas de Penina - Livro 1 - Os desenhos de Cornélio (COMPLETO)
FantasyAVENTURA/FANTASIA - O segredo que separa a realidade da imaginação é bem mais sensível do que todos imaginam, e Cornélio, um famoso escritor, tinha esta verdade como lema de sua vida e de suas obras, até seu último suspiro. Depois de sua morte, o a...