38. A garota que fez história

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AINDA NOS CAMPOS ABERTOS.

Eu deveria ter calculado da dor da morte antes de decidir ficar, talvez isso tivesse me feito obedecer Elcana e então eu estaria segura e a salva no Castelo-Forte, junto dos meus amigos.

Mas não.

A chamas de Audur, o dragão, tragaram-me impiedosamente, alastraram-se por toda minha volta devastadoras. A sensação foi terrível, meu corpo inteiro ficou em tensão absoluta e todos os meus músculos enrijeceram ao ponto de minhas pernas ficarem dormentes. De olhos fechados e gritando diante da claridade estonteante que me cercava, tudo que me restou foi aceitar a dor e aguardar o que vinha depois: o calor inebriante, o ardor aflitivo e então... a morte!

Eu esperava que fosse ser rápido e que logo o silêncio anunciasse o mergulho no fim de todas as coisas.

Estranho.

Porque não foi assim.

Nada disso veio.

Não houve dor. Não houve nada.

Eu estava sentindo as lambidas em minha pele me arrepiarem, como línguas mornas que me alisavam e que me causavam náusea e desespero, mas não dor.

Achei, então, que a morte tinha chegado. Que no fim das contas esquecêssemos de todo mal-estar quando éramos abraçados por ela e que esquecêssemos até mesmo a dor.

Porém as chamas estavam ali por toda parte, envolvendo-me e tremeluzindo além das minhas pálpebras, tão reais quanto meus pensamentos naquele momento, que também não esqueceram de nada.

Eu podia senti-las, saber que eram de fogo, saber que podiam queimar. Eu ainda era eu. Eu ainda estava viva, numa fornalha, claro, mas viva.

O que a morte está esperando, afinal?

Nisto, deixei de gritar e abri meus olhos lentamente, ainda com medo do que eu veria ou de qual consequência viria: decepção? Mais pavor? Ou talvez felicidade por ter acabado?

Mas nada disso.

Lá estava eu de pé, realmente viva e realmente consciente.

O que está acontecendo?

Foi a primeira coisa que me veio à mente, e das coisas estranhas que eu já tinha vivido no meu pouco tempo de vida, aquela estava preste a se tornar a mais interessante – e talvez alucinante – de todas, pois tudo que eu via eram as chamas da boca do dragão, que saíam impetuosas e bruxuleantes, consumindo toda a grama e a terra em volta numa temperatura altíssima, mas diante de tudo isso, elas passavam por mim como se não fossem nada mais que uma cachoeira de águas mornas.

Isso era o mais confuso.

O que estava acontecendo comigo?

Eu estava intacta – congelada na posição em que fui pega pelo dragão, claro, mas intacta – e com os braços erguidos pelo instinto de defesa, pois no desespero, estendi a espada de Yllen acima de mim numa tentativa inútil de me proteger.

Quando tomei conta do que realmente estava acontecendo, o arrepio em meu corpo aumentou, porém, subitamente, as chamas cessaram. O dragão simplesmente parou de lançá-las, não sei se cansado, não sei se esgotado, mas parou. Meus olhos piscaram, ofuscados e levemente escurecidos, pois a quantidade de luz que eu tinha recebido fora grande. Meus pensamentos borbulhavam tentando entender o que estava havendo, mas eu realmente não fazia ideia e temia pelo que viria em seguida.

Quem sobrevive a tanto fogo assim?

Primeiro tentei sentir meu corpo, sentir meus movimentos, e todos estavam lá, tão normais quanto antes. Olhei minhas pernas e a pele das mãos e também estavam íntegras, sem dor nem manchas. Quer dizer, exceto pelo meu braço esquerdo, que estava doendo e doendo bastante perto do cotovelo. Crispei os cenhos. Ali era onde ficava a ferida da Fogo-Fátuo. Já fazia dois dias que ela não doía mais, nem incomodava, e eu até já estava começando a achar que tinha melhorado.

Crônicas de Penina - Livro 1 - Os desenhos de Cornélio (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora