Quinta-feira, final do mês.
É um sufoco quando chega esta época, as contas parecem nunca fechar e a demanda da comunidade só parece crescer.
Realizei uma vontade de reconstruir o local que sempre morei. Ajudar a população que sempre foi esquecida pelo poder público. Dar esperança às pessoas, principalmente, jovens que foram abandonados à marginalidade.
E por ironia, essa comunidade se perdeu com ajuda de meu pai.
Ele era líder do tráfico. Pessoa perigosa, condenado pela justiça, foragida e procurada pela polícia. Minha mãe sabia quem era ele.
Ela ignorava a situação, apenas gostava do conforto que ele lhe dava. Já eu era muito pequena para entender o que se passava.
Minha preocupação era apenas com minha irmãzinha caçula, a Gabi. Eu cuidava dela, a alimentava, dava banho, desde que chegou do hospital. Enquanto minha mãe ficava com meu pai em seu quarto, cuidava da pequena.
Eu ia para escola preocupada com a Gaby, ficava me perguntando se mamãe tinha se lembrado da mamadeira, de lhe dar banho. Coisas que uma menina de 12 anos não deveria se preocupar tanto.
- Jane? – Rô chegou na porta do pequeno escritório montado na ONG – ocupada?
- Não, Rô, estou tentando fechar as contas – ele sorriu e se sentou à minha frente.
Roque ou Rô é um negro lindo, esguio, professor de português da escola municipal que firmamos convênio.
Em um turno os meninos tinham as aulas habituais e noutro eles vinham para cá, do outro lado da rua, para ter aulas de vários tipos de linguagens. Artísticas principalmente, mas havia esportes e reforço das disciplinas clássicas.
- Então foi salsa ontem? – bati meus olhos em resposta.
- Yeah....
- e o professor me usou como cobaia.
- Ah, sério, Mona? – ele fez bico – porque não fui?
- Hummm será que é porque você estava com o seu maestro?
Ele soltou um suspiro.
- Nem rolou – ele cutucou uns papéis em cima da mesa – levantei a cabeça do monitor.
- O que houve?
- Ele está uma pilha de nervos por causa da viagem para São Paulo. E de mau-humor, nem o gato aguenta.
- Ah... Lamento. Rô.
Ele torceu os lábios.
- Aproveitei para acertar parte de minha monografia. Estou me atrasando nesta droga de mestrado.
Sorri
- Força, amiga.
Voltei à planilha aberta no computador.
- E então?
- Então???
- Soube da proposta do Pepê.
Olhei para ele, balancei a cabeça e bati os dedos na mesa.
- Quem te contou?
- A Gaby.
- Aquela linguaruda.
- Veja bem Jane, é uma oportunidade única para ONG. Seria um salto...
Levantei a mão e o interrompi.
- Não, Roque. Fazer esse acordo seria selar uma sentença de escravidão ou morte.
- Ai, deixa de exagero. É uma forma de ajuda...
Olhei para ele torto.
- Não estou exagerando. Você sabe muito bem de onde veio a proposta, de onde viria o dinheiro. Forma de ajuda, bah! De boas intenções o inferno está cheio, Rô.
- Jane, vamos, reconsidere. Independente de quem seja, é uma empresa como muitas que quer ter a redução nos impostos e ter sua imagem associada à um benefício social. Fazer algo bom.
- Algo bom? Às custas de contratos cheios de vieses e parágrafos questionáveis?
- Ora, questione-os..
- Não, Roque. Prefiro ficar apertada em minhas contas e pedir esmolas aos programas dos Governos. Mas não irei nunca compactuar com a proposta do Pedro.
- Você é quem sabe, teimosa. Mas duas coisas: nunca diga nunca e lembre-se o Pepê manda aqui tanto quanto você.
Ele não precisava lembrar isso.
Outra batida na porta.
- Oi – a Berta chegou na porta meio desconfiada - Eu já vou indo – engoliu seco . Seu corpo magro e mais desengonçado do que o costume denunciava que algo de errado estava por detrás daquela porta.
- Ok - ela não saia do lugar - que há? – eu disse retirando os óculos de leitura.
- Desculpa, Jane, por mais que disesse que você não o receberia....
Passei a mão na testa.
- Não me diga... - o Rô disse devagar.
- Hum, hum... Advogado está aí.
Olhei para o Rô, que fitou sério. Não era possível.
- Qual advogado? - perguntei para confirmar a visita do emissario do Diabo.
- Você sabe, o advogado SB.
Comecei a bater os pés descalços no chão frio e manchado. O Rô mudou sua postura na cadeira. SB... Sangue Bom é o inferno, não ele!
- A proposta de parceria tem mais de dois meses de feita?
- 8 meses... - soltei o ar.
- Você brincando com o Diabo mesmo.
- Não... - gritei e abaixei minha voz olhando para a Berta - não... é minha decisão, eles deveriam respeitar!
- Eu sei disso, Jane, mas já pensou que você está sendo cercada? Ele disse em tom mais baixo? As coisa parecem bem piores agora... Nunca a ONG passou...
- Estamos em crise...
Ele respirou fundo.
- Não está mais aqui quem falou... Quero te ajudar...
Claro que eles iriam apelar. Teriam que vir pessoalmente, um por um. Assim, eles optaram por mandar em primeiro lugar o mais interessado.
- Pode ir Berta - girei o pescoço - e pode mandar ele entrar.
- Quer que eu fique? – o Rô me perguntou.
- Sim - suspirei - não quero matar ninguém, principalmente um cara que tem a polícia, a justiça e tanto dinheiro nas mãos. Você precisa me segurar.
Dois minutos depois ele entrou no escritório.
Estava muito mais bonito desde a última vez que nos encontramos. Com um sorriso, que para muitas seria arrebatador, para mim, não se passava de cinismo disfarçado, além disso, carregava um olhar curioso em todas as coisas na sala.
Sua altura dominava o ambiente assim como seu perfume.
Meu nervosismo aumentou, não pela sua presença, mas sim por tudo que ele representou em meu passado.
- Está apreciando a paisagem do local errado da Ponta.
Ele se voltou e fincou o olhar em mim.
- Boa tarde - disse mordendo os lábios finalmente.
Fiz um barulho com a boca.
- Estava muito bem até pouco tempo.
- Continua amável como sempre Djeane.
- Não posso te dizer o mesmo, Dr. Douglas.
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Tempos de Dança: Renascimento e Redenções
RomansaRemissão, era tudo que Djane queria. Ficar em seu canto, cuidando da ONG que criou para ajudar aqueles que como ela, uma dia, precisam de orientação, segurança e paz. Ficar em seu canto, ajudando sua irmã a ser a musicista que sempre sonhou. Ficar...