Aparentemente, aquela noite era um flashback ruim. Maria e Tia Madalena, sentadas no sofá da sala, tentavam parecer relaxadas, mas ambas tremiam. Dave nem precisava conhecer bem as duas para saber que estavam preocupadas. Madalena segurava sua neta e chacoalhava-a exageiradamente mesmo sabendo que a menina já estava dormindo. E Maria acariciava o gato pelado de Madalena, mesmo que todos na família detestassem aquele bicho egoísta. As duas mulheres fitavam a televisão, parada em uma reprise de novela que até Dave conhecia, mesmo estando longe da televisão brasileira por cinco anos. O menino não sabia o que fazer.
Sua vontade de voltar para Érestha, correr para Thaila e enfiar sua espada no meio do rosto de Tabata Jane Bermonth era tão grande que ele recorria à atividades triviais para distraír-se. Ele já havia lavado toda a louça, tirado o pó dos porta-retratos e ido até o bar do outro lado da rua para comprar bolinho de carne. Andara de um lado para o outro por alguns minutos, sentou-se para rever um capítulo com as mulheres, trocou a areia do gato do mal. Todos estavam desesperados, mas ao menos Maria e Madalena sabiam controlar-se. O menino conhecia muito bem sua mãe, e quase conseguia ver os flashes da noite em que seu pai se fora refletidos em seus olhos. Ninguém tinha mencionado Rick ou Lorena, e ninguém queria pensar nos dois dentro da guerra. A verdade era que o menino estava esperando uma batida na porta ou uma luz roxa emitindo de seu comunicador de vidro para lhe contar notícias ruins.
"Thaila está morta"
"Capturamos seu irmão"
"Foi tudo em vão, Dave Fellows. Você falhou com seu pai e a rainha Thaís"
Ele estava torturando-se com palavras e imagens horríveis. Os minutos no relógio tiquetaqueavam lentamente a fim de acrescentar àquela tortura. Todos na sala tinham consciência daquilo, mas ninguém tinha estrutura emocional suficiente para ajudar os outros. Dave parou de contar os minutos e foi até o quarto que era de Lorena. Agora servia apenas para Tia Madalena armazenar suas coisas e caixas. A porta da varanda estava aberta para tentar deixar o calor do dezembro brasileiro para fora. Ele sentou-se no chão entre uma caixa e a porta de vidro e abraçou suas próprias pernas. Tentou dormir, mas não conseguia. Tentou distanciar sua mente de tudo o que lhe perturbava, mas não conseguiu. Tomou alguns minutos para analisar o ferimento em seu braço, mas resolveu que não queria tocar em nada e acabar se machucando. Terminou por distraír-se com as coisas de Tia Madalena. Era difícil ler sua caligrafia nas caixas ou entender o porquê dela ter tantos porta-retratos vazios caídos no chão.
O menino começou a mexer nos objetos caídos até encontrar uma folha amarelada. Alguma coisa estava escrita nela, mas o tempo havia apagado tudo. Quando virou o papel, encontrou um par de olhos sorridentes muito familiares. Mesmo que fosse uma ideia absurda, ele pensou que fosse ele mesmo antes de prestar atenção. O homem retratado estava em pé segurando uma versão bem mais nova de Lorena no colo. A menina, sorridente e sem os dentes da frente, pendurava-se de ponta-cabeça nos braços dele e parecia estar se divertindo muito. Reginald Fellows era assustadoramente parecido com Dave naquele moemento. Não apenas os olhos ou as feições, mas o olhar de preocupação estampado em seu rosto. Ele tinha medo. Em seus olhos azuis brilhantes, também tinha refletido os terrores vividos em Érestha, e isso arrepiou cada centímetro de Dave Fellows.
Ele não era nada mais do que uma continuação da história de seu pai, e isso era muito importante para o menino. Ele queria colocar um ponto final naquilo tudo e começar sua própria história. Mas queria um final feliz.
Quando ele colocou a foto de volta no chão ele ouviu a porta da frente se abrindo. O som foi seguido de três choros distintos e uma risada infantil. Dave levantou-se em um pulo, derrubou algumas caixas e deve ter pisado no porta-retratos que antes admirava. Percorreu o pequeno corredor de Tia Madalena em três passos, e atirou-se no chão para juntar-se ao abraço coletivo que acontecia. Lorena e Rômulo tinham a bebê no colo, e a prima não parava de dizer que estava tudo bem. Dave acabou entre sua mãe e Lorena, e teve que respirar fundo quando ouviu palavras positivas. Ele não sabia se queria sorrir ou chorar, e acabou com alguma coisa entre os dois.
-Dave, Dave! -Lorena chamou, chacoalhando o ombro machucado do menino. Ele nem sentiu sob o efeito de toda aquela arenalina. -O seu pai estaria tão orgulhoso de você. Eu mal posso acreditar que isso tudo acabou.
O menino sorriu, como se fosse uma criancinha ouvindo aquilo. Ele queria agradece-la e abraçar todo mundo, mas estava perdido naquele transe.
-E Rick? -Maria levantou-se, preocupada. -E Nicolle, como estão as crianças?
-Estão todos bem, reunindo-se no Castelo de Vidro -Rômulo respondeu. -Olhe, Thaila deve voltar da ilha à qualquer momento. Eu preiso encontrar com minha mãe e meus irmãos também.
-Ora, vamos, vamos -Tia Madalena sorriu, puxando os outros para que todos levantassm-se. Os outros ficaram perplexos. Ela nunca ficava feliz assim de ir para Érestha desde a morte de Reinald. -Eu quero ver esse novo começo com meus prórpios olhos.
_*_*_*_
Dave não sabia bem o que estava procurando, mas olhava de um lado para o outro sem parar. O gramado da rainha havia transformado-se em um caos completo, mas todos estavam bem com essa ideia. Haviam fogueiras espalhadas para aquecer o inverno, tendas improvisadas para atendimento médico, comida e água sendo dividida e oficiais de todos os cantos de Érestha tentando acalmar e explicar tudo para os cidadãos. Dave já tinha visto Riley e Alícia, que haviam parado para conversar com Rômulo aos portões de ferro do Castelo de Thaila. Já havia falado com seu irmão e Argia, que estavam muito ocupados e um pouco perdidos em relação às responsabilidades do pós guerra. Sua mãe não queria sair de perto de Rick, e agora ele os tinha perdido na multidão.
Talvez ele estivesse andando até Thaila, que sorria para ele lá do centro da aglomeração. Ou até Bia, que sentava-se com uma Missie chorosa, Ajala, Tyler e outros membros orgulhosos dos sem-medos ao redor de uma das fogueiras. Mas seus pés não sabiam bem para onde andar com tanta leveza. Dave sentia-se novo. Quando se deu conta, ele tinha parado no meio de todos, e estava admirando o sol brilahndo contra as paredes de vidro do castelo. Tão mágico como da primeira vez em que o vira. As pesadas cortinas vermelhas estavam rasgadas e sujas na ponta, e a grama estava morta, mas era ainda mais belo daquele jeito.
-Ei, Dave Fellows -alguém chamou. Ele olhou em volta por um tempo até que seus olhos pararam na dona da voz.
Ela não precisou dizer mais nada. Isabelle DiPrata parecia uma princesa, mesmo com os olhos inchados e o rosto sujo de sangue. Os dois correram em direção e jogaram-se um contra o outro em um abraço que demorara demais para acontecer. Ela ainda cheirava à morte e era fria como tal.
-Me desculpe, Belle -ele sussurrou. Pareceu sentir o sorriso da menina
-Não seja idiota, Dave -ela respondeu. -Agora está tudo bem. Se tivesse interferido de alguma forma nada teria dado certo.
-E o que vai ser de você agora? -ele deu um passo para trás, sorridente.
-Eu vou cuidar da morte, Dave. Nada muito diferente do que eu já estava fazendo antes.
-E tenho certeza de que vai ser fantástica -Thaila falou, aproximando-se dos dois. Seus cabelos roxos e seu olhos enigmáticos e seu vestido de rainha e suas botas roxas com corujinhas coloridas faziam dave querer sorrir. Eles dois haviam depositado confiança um no outro quase à força, e agora não sobreviveriam sem um ao outro. Ela abraçou o filho do soldado e deu um beijo em sua testa. -Vou chamar alguém para cuidar desse seu ombro, Dave. Venha comigo, Isabelle, sim?
As duas viraram-se de costas e andaram na direção de uma das tendas. Dave também virou-se, para o outro lado, e foi até a fogueira onde seus amigos se encontravam. Riley, Alícia e alguns outros haviam juntado-se a eles e agora Missie descançava a cabeça no ombro de Lilian Alberton. Ele cumprimentou a todos e deu um beijo em Bia. Posicionado em frente a todos, ele não sabia o que dizer. Eles olhavam para Dave com sorrisos, e isso era a maior recompensa que ele podia pedir.
-Aquela pizza ainda está de pé? -Bia perguntou, olhando em volta e esperando respostas. -Eu realmente estou com fome.
Dave revirou os olhos, sorridente, enquanto os outros riam, quase incrédulos, da menina. Ela tentou se defender, e Dave só sabia rir. Aquele sentimento de paz e missão cumprida que o envolvia era terapeutico.
E então, ele deitou na grama do castelo da rainha, em paz, como uma vez fizera seu pai.
FIM
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Érestha -Castelo de Ilusões [LIVRO 5]
Fantasia"Se não for leal à rainha o outro lado conseguirá o que quer." As palavras do Mago Roxo finalmente começam a fazer sentido após Dave descobrir e decifrar o enígma da rainha. Está em suas mãos decidir tomar seu lugar como soldado de Thaila ou lutar...