Mal coloco os pés fora da estação quando Enobaria anda até mim com uma expressão muito conhecida no rosto moreno. Os lábios entreabertos, expondo os dentes afiados; o cenho franzido, deixando algumas rugas de preocupação à mostra; a marcha pesada, antecipando a bronca. Eu demorei mais do que imaginava que demoraria em minha viagem, e mesmo que houvesse chegado na hora planejada, alguém acabaria percebendo minha ausência quando não me encontrassem na academia ou em casa.Há dias nos quais uso as vinte e quatro horas que ele me concede para dormir. Não preciso de remédio algum e nenhum dos pesadelos aparece, eu simplesmente apago, e todos descobriram que não há o que me faça despertar nesses dias, por isso sempre me deixam sozinha. Ainda assim, minha mãe aparece de hora em hora para checar se estou morta ou se continuo apenas dormindo. Ela tem uma cópia da chave da porta da frente, e confiscou todas as outras que poderiam trancar os quartos. Provavelmente já havia checado a casa e se dado conta, ou fora informada por algum funcionário da estação de que eu não estava no distrito.
A careta some quando Gloss aparece atrás de mim, e ela para de andar, agora tomada por uma face confusa de olhos arregalados. Tento imaginar o que se passa em sua mente, e se devo dar alguma explicação para a presença do mentor do Distrito 1, ou para meus cabelos encharcados e maquiagem borrada, consequências da chuva forte sob a qual andei sem rumo no Distrito 4. Antecipando minhas próprias ações, Gloss passa por mim e anda até ela. Sigo-o, e coloco-me ao seu lado, atenta ao que ele parece querer segredar à minha mãe. Ela divide os olhares, ainda confusos, entre mim e ele, e elevo os olhos para o visitante, pedindo silenciosamente para que continue. Ele hesita enquanto olha fixamente para mim, e concluo que deve se tratar de algo que não posso ouvir. Ainda assim, a urgência em sua postura me faz querer ouvir.
— Preciso falar com Brutus antes que eles cheguem — diz, o tom de voz concordando com a postura de urgência — Preciso do seu apoio nisso, Enobaria.
Não entendo uma palavra do que foi dito, mas minha mãe parece captar depois de alguns segundos digerindo a informação. A esta altura, já posso notar os olhares curiosos sobre nós, e os olhos arregalados quando Enobaria faz um gesto para que Gloss a siga e ele segura minha mão, puxando-me com ele para onde quer que minha mãe esteja indo.
Andamos até um carro que nos leva à Vila dos Vitoriosos. Por alguma razão, não consigo pensar com plena racionalidade ainda, e por isso sigo meus veteranos sem questionar. Estive confusa desde o Distrito 4, e não disse uma palavra durante a viagem de volta. Limitei-me a ficar sentada no sofá, abraçada aos joelhos, aquecida meramente pelo cobertor que meu novo protetor me entregara e pensando na chuva, no mar, e na falsa presença de Sander enquanto eu andara pelos limites de seu lar. Havia sido tão real, e me fizera sentir tão feliz por aqueles breves minutos, que me fez esquecer de todo o horror no qual tenho vivido. Naquele momento, era como se nós nunca houvéssemos participado dos Jogos, como se houvéssemos nos conhecidos em uma tarde de verão naquela província litorânea, e estado juntos desde então.
Sei que não era real, mas minha mente ainda parece presa naquela ilusão, como se ainda estivesse lá, e não de volta ao Distrito 2. O carro para de frente para a casa de meu pai, e vejo Grill correndo até nós, tão perdido quanto minha mãe pareceu ao ver o vitorioso comigo. Ela diz a ele a mesma coisa que ouviu minutos atrás, e tenho dificuldades em entender que devo continuar a andar até que Gloss aperta minha mão e me faz continuar.
— Brutus! — grita Enobaria, socando a porta de entrada sem pudor — Brutus, abra a droga da porta, é urgente!
Não demora e meu pai aparece, vestido em um roupão negro feito de um tecido grosso, o mesmo que sempre usa em casa, desde que me lembro. Quando era criança, gostava de me imaginar vestindo um daqueles, depois de vencer os Jogos e parecer tão poderosa quanto ele. Olhando para mim mesma agora, percebo que algo deu extremamente errado no plano. Ele passa os olhos por todos, e diferente dos outros, não parece surpreso pela presença do convidado extra, pelo contrário, seus olhos azuis se estreitam em pura desconfiança.
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73ª Edição dos Jogos Vorazes
FanfictionVencer através do sangue dos inocentes nunca foi nada além de um mero detalhe no caminho para a glória na vida de Syrena Jaeger. Fruto do breve relacionamento entre um par de vencedores do Distrito 2, a garota passou seus anos se preparando e sonhan...