Anna

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Já fazem dois anos desde que aquele pesadelo teve fim e devo dizer que muita coisa teve seu ciclo encerrado naquela mesma época, para que novas perspectivas, sonhos e realizações ganhassem seu lugar na minha vida. Há oito anos, eu era uma jovem sonhadora, que pretendia tornar-se médica, mudar o mundo e salvar vidas. Um ano depois, tornava-me mãe de um fruto daquele lugar, estava em cativeiro e vi todos meus sonhos serem rasgados como uma folha de papel, assim como vi um amor florescer em meio a tanto horror por minha filha. Há dois anos, fora resgatada e me sentia perdida, sem saber para onde ir, por onde começar e em quem confiar. Hoje, eu encontrei o meu norte, me dedicar a ser a melhor mãe que eu consiga para minha filha, ingressei na faculdade de psicologia e atualmente trabalho em uma associação que cuida de crianças, jovens e adultos vítimas de qualquer forma de violência.

Poucos meses após o julgamento, peguei minha filha e as poucas coisas que precisávamos para viver e me mudei para  São Paulo, onde não conhecia ninguém, assim, poderia começar minha vida do zero. Comprei uma casa simples com o dinheiro que ganhei no julgamento, matriculei Ayla em uma escola que ficava no meio termo entre nossa casa e minha faculdade e mergulhei de cabeça em ajudar pessoas que assim como eu tiveram algo arrancado delas.

Dizem que a melhor forma de superarmos um trauma é enfrentando ele, e é isto que faço cada dia da minha vida, contando minha história, escutando a das outras pessoas e tentando ajudá-las assim como elas me ajudam.

Pode parecer uma mudança radical, e muitos devem se perguntar se me sinto realizada tendo abandonado meus antigos sonhos para buscar novos, mas posso dizer com total certeza que sim. A Anna do passado sonhava em ser médica, conquistar prêmios e pensava apenas em si, a Anna do presente precisou encontrar meios de sobreviver, sonhos que a ajudassem a seguir e não mais colocar sua vida em primeiro lugar e sim a de sua filha.

A muito tempo não via ninguém que fizera parte de meu passado, meus pais nunca mais tentaram fazer contato, e eu agradecia por isso, alguns amigos da época da faculdade tentaram falar comigo, marcarem encontros os quais recusei ou ignorei sem pestanejar, até mesmo Jony ficará para traz, em Viçosa, não concordava com minha ideia de partir sozinha com uma criança, para um lugar sem ninguém em quem me apoiar, mas aceitou, percebendo o quão importante para mim seria ganhar novamente minha independência e liberdade.

Hoje seria um dia importante em minha vida, há dois meses fora convidada a palestrar em uma conferência do governo que tratava de violência doméstica, tráfico humano e abuso de crianças e jovens por todo país. Já fizera palestras antes, mas sempre para grupos de apoio reduzidos, pequenos colaboradores e vez ou outra um jornalista interessado em minha história, mas nunca algo dentro desta escala, um auditório com pelo menos setessentas pessoas, convidados do auto escalão e a imprensa, todos presentes e atentos a minha figura, que agora subia ao palco com sons de aplausos ao fundo e luzes focadas diretamente em mim.

Vou até o centro do palco, arrumo meus papéis sobre o palanque e olho para a multidão, todos atentos ao que tenho a dizer e isso arranca um sorriso dos meus lábios, era bom ser ouvida e que prestassem atenção ao que eu tinha para falar.

- Bem... Devo dizer que estou um pouco assustada, quando recebi o convite jamais imaginei que haveriam tantas presentes - Olho para platéia e eles sorriem em simpatia a mim - eu passei por muita coisa e se você está aqui, neste lugar para me ver, é porque já ouviu falar sobre a minha história e sobre tudo que passei. Foi muito difícil, foi brutal, foi traumático, mas hoje eu também consigo ver como uma lição de vida, algo que me tornou o que sou hoje e principalmente algo que não define a minha vida, que não permitirei jamais que comande a minha felicidade, meus medos, meus sonhos... Olhando minha filha agora e vendo o quão feliz ela é, eu consigo dizer que não mudaria nada na minha vida, tudo que passei me tornou no que sou hoje e me deu o meu bem mais precioso, minha Ayla, assim como o poder de conseguir ajudar outras pessoas através da minha história de vida.

" Quando passamos por provações podemos seguir dois caminhos, nos entregar e desistir, ou podemos lutar e seguir em frente. Talvez eu nunca leve uma vida normal, mas é importante assumir o que me aconteceu, falar sobre o assunto e seguir em frente. Quando enfrentar uma provação, não desista, não se entregue. Siga em frente, pois você nunca sabe o que será capaz de fazer com isso. Nunca sabe quantas vidas poderá tocar com a sua história. "

" Minha história começou tocando um pequeno grupo de moradores de uma cidade pacata de Minas Gerais, então ganhou cidades, estados e enfim, o mundo. Meu livro já foi traduzido para mais duas línguas, as vendas já atingiram um número superior ao que imaginávamos e o dinheiro arrecadado já mudou centenas de vidas pelo nosso país. Então, a minha história, uma menina comum, simples e com um passado cruel, já tocou milhares de corações e já proporcionou uma mudança que jamais esperei. A minha história fez a diferença e eu sou grata por isso."

" Não vou dizer que superei, ou consegui perdoar aquele que me causou tanto mal, mas consigo dizer a vocês que eu venci e nunca vou desistir de lutar para continuar vencendo. Obrigada!"

Termino ao som de aplausos, sou cumprimentada por muitas pessoas que nem consigo lembrar tantos nomes, até enfim ver um rosto conhecido em meio a multidão.

- Jony? O que você faz aqui?

- Ei garota, como você está? - Sou abraçada por meu amigo que a tanto tempo não via - Bem, não se falava em outra coisa naquela cidade que não fosse sobre uma convenção, sua palestra e você aparecer na televisão, então eu precisei vim pessoalmente ver que história era essa. Afinal se Maomé não vai até a montanha, a montanha vem até Maomé.

Abraço meu amigo novamente, feliz em tê-lo ali comigo.

- Fico feliz que esteja aqui, é bom ver um rosto conhecido depois de tanto tempo.

Eu estava feliz com aquela conquista e ter Jony ali comigo somente reforçou tamanha felicidade. Curtimos o resto do evento e quando retornei para casa, meu amigo veio comigo, louco para matar a saudade da minha pequena filha.