Interlúdio: Lágrimas de Fogo

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Algum Lugar do Leste Asiático, Período pré-Jomon


Ame correu para o interior da caverna, os pés descalços causando eco sobre o chão de pedra, e acomodou-se na fileira da frente do grupo de crianças. Todas estavam reunidas para ouvir as histórias que a Matriarca tinha para lhes passar. Era uma mulher pequena e frágil, a pele morena e enrugada coberta por manchas e os olhos já quase sem cor. Apoiava-se em um galho seco de árvore entalhado com vários desenhos e formas. Ame não tinha como saber, mas aquela mulher era sua bisavó.

Segundo a Matriarca, a tribo viera de muito longe, antes que a água venenosa tomasse a terra para si, do lugar para onde o Sol se retirava todas as noites. Em seu idioma primitivo, contava sobre os desafios que precisaram enfrentar, sobre as feras que os acossaram, a fome e o frio, quando ela mesma ainda era uma criança. Ame ouvia a tudo com brilho nos olhos, tentando imaginar uma vida longe daquela caverna. Como uma das mais novas, havia nascido, crescido e aprendido que a caverna era o pilar central da tribo e deveria ser defendida a todo custo.

Ao final das histórias, a Matriarca lhes ensinava, junto de outras mulheres mais jovens, a arte de criar os preciosos vasos de cerâmica que serviam para armazenar as castanhas e água de que precisariam para a época fria, assim como para o transporte de outras matérias-primas como a argila do rio próximo, as frutas das árvores distantes e os peixes pegos próximo à costa.

Todas as crianças ajudavam na confecção das cerâmicas. Era um trabalho sujo, demorado, e que as vezes causavam brigas entre elas. Naquele dia, estavam criando um vazo que era tão ou mais alto quanto a própria Ame, a boca fina e o corpo largo para armazenar bastante coisa. Deixaram-no ao sol para secar quando tudo terminou. Era tão pesado que apenas os adultos podiam carregar.

Naquela noite, ao redor de uma das fogueiras que eram feitas na boca da caverna, Ame, junto de seus muitos irmãos e irmãs, devorava a caça que seus pais haviam trago naquele dia. Era um dia bom. Dois veados e um javali, além de uma infinidade de nozes e frutinhas. Um verdadeiro banquete. Podia ver alguns adultos patrulhando com lanças e pedaços de madeira em brasa, espantando as feras mais curiosas que eram atraídas pelo odor da carne assada. A maioria pouco falava, distraída. Os que falavam, contavam sobre as coisas que haviam visto durante a caçada. Montanhas tão altas que tocavam o céu, grandes manadas seguindo o fluxo dos rios, ou mesmo outras tribos de lugares distantes.

Ame recolheu-se para o interior da caverna e adormeceu agarrada às suas peles, tentando se aquecer. Quando enfim adormeceu, teve um sonho. Um particularmente estranho. Estava voando como um pássaro, observando toda aquela terra do alto. As montanhas e o mar distante, as florestas e bosques verdes, as manadas de animais selvagens. O sol brilhava forte, mais forte do que de costume, como se a estivesse convidando e Ame sentiu-se acolhida por aquela luz.

Então, a luz desapareceu. O céu tornou-se cinzento e começou a chorar poeira negra e branca, parecida com a neve que caia no inverno, mas essa era diferente. Era quente. Muito quente.

Ao longe, mais longe do que qualquer um já havia enxergado, viu uma montanha chorar fogo para o céu. Todo o horizonte brilhava intensamente com aquela luz alaranjada e avermelhada e os animais fugiam enquanto a terra tremia frente o poder da montanha. De repente, Ame não estava mais voando, mas sim no chão, em meio ao campo devastado pelo fogo, cujo calor escaldante era pior do que qualquer coisa que já havia sentido em sua curta vida.

Das chamas surgiu um estranho animal, diferente de tudo o que já havia visto. Tinha cascos e chifres longos como galhos de cerejeira, escamas brilhantes como os lagartos e uma crina de fogo como as deixadas pelas tempestades de raios. A estranha fera aproximou-se com cautela, exibindo seus olhos em brasa para a garota. Ali, Ame viu o que estava a sua frente. Viu seus irmãos e irmãs queimarem frente a fúria da montanha, viu aquela nova terra ser devastada pelo fogo. Na visão, um casal discutia sobre algo que ela não era capaz de entender. A mulher estava criando vida dentro de si e essa mesma vida a queimara ao nascer.

O Ballet da Garota MágicaOnde histórias criam vida. Descubra agora