Cambré

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Acordei poucos minutos antes do som estridente do despertador tocar. Não precisava olhar para saber que eram sete em ponto, nem um minuto a mais ou a menos. Após poucos segundos contados pela dor latejante de minha cabeça, levantei da cama rapidamente, aproveitando para estalar as costas e pondo os pés no chão, sentindo uma surpresa gélida nos dedos. Estiquei os olhos até meus pés nus sobre o chão lustrado de madeira, tomando a falta das pantufas. Sempre as deixava ali antes de dormir.

-Onde diabos...-Bufei olhando em volta

Demorou poucos segundos até conseguir encontrar os calçados rubis próximos a cortina azul que tapava o sol. Não tinha certeza de como tinham ido parar ali, mas apostava que ocorreu quando os arremessei ontem de noite, após a ligação de Jiraya. Só de pensar no nome do sujeito um amargor subia no paladar e a raiva pelo corpo. Faziam alguns anos desde o divórcio e definitivamente ligar bêbado a noite era uma fase que já imaginava termos superado. Não tinha jeito, contar com algo era como apostar, e sempre fui péssima em apostas. Suspirei pondo-me de pé e seguindo até o banheiro. A falta de luz dificultava enxergar as coisas no quarto Pastel, mas não era um grande estorvo. Minhas coisas se mantinham no mesmo lugar.

Talvez o choque térmico ajudasse a esquecer o constrangimento alheio e os gritos da noite passada. Retirei a roupa, pondo-a com cuidado sobre o cesto e segui direto para a o box fosco, sabendo que assim que terminasse minha toalha estaria esperando ao lado de fora. Tudo em minha rotina era impecável como deveria ser e Amélia colaborava com isso, ao contrário de minha sobrinha, no entanto não podia culpa-la, era só uma adolescente.

"Talvez deva ser um pouco menos impetuosa" Calculei com os acontecimentos recentes enquanto desligava o chuveiro e seguia para fora tateando o cabideiro pela toalha, fechando a mão a cegas em torno do tecido fofo, cobrindo meu corpo. Antes de sair, dei uma breve checada no espelho, me surpreendendo com os olhos um pouco inchados e pele um tanto quanto pálida, como se tivesse levado um susto. Aquele homem era o único que conseguia por essa expressão em meu rosto e era por isso que me irritava.

Me aproximando da cama, passei os olhos sobre o retrato em cima da cômoda. Era uma foto antiga minha e da Mebuki, antes do casamento com o traste do seu marido. No fim, escolher mal os homens tinha sido algo herdado de família e rezava secretamente para que Sakura não o tivesse puxado. Lembrava-me com facilidade das brigas que tinha com a mais nova, implorando para que não desperdiçasse seus bons anos ao lado daquele homem, mas ela sempre o defendia, o que causou nosso afastamento, ao menos até sua morte. Fiquei surpresa ao descobrir que tinha me deixado uma carta com palavras que não teve coragem de dizer em vida e que me feriram pela saudade.

Foi difícil nos primeiros dias, todos estavam inconsoláveis e não demorou até que o traste terminasse de se afundar pondo a vida da própria filha em risco. Graças a isso, toda vez em que meu telefone toca sinto o receio de receber outra notícia ruim, como na vez em que o mesmo desapareceu por três dias inteiros, deixando a menina de apenas quatro anos trancada sozinha em casa, sem nem mesmo ter algo para comer. Os vizinhos a ouviram chorar durante a madrugada e conseguiram entrar em contato comigo. Depois do acidente de Mebuki aquela foi a segunda vez em que pensei que meu coração fosse parar, e me vi largando uma importante reunião para correr em socorro de sobrinha. No fim, a garota estava tão faminta que tinha quebrado o braço ao escalar o armário em busca de algo para comer, sendo a principal justificativas que usei para tomar sua guarda, a afastando o máximo que conseguia de seu pai. Nunca questionei Sakura se ela lembrava desse dia e depois de anos a única coisa que lembrava do homem eram seus cabelos ruivos, quase que róseos, os quais a menina havia herdado, mas com exceção disso não se assemelhava nada ao seu pai e tinha prometido mantê-la o mais perto possível para que nunca corresse este risco.

A boneca e o bailarinoOnde histórias criam vida. Descubra agora