Grand Écart

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 Despertei quando o relógio marcava às dez da manhã, significando meu total atraso e desespero por alguns segundos, até checar meu celular e me dar conta das mensagens de minha tia, avisando que ficasse em casa e descansasse. Aquilo só havia ocorrido poucas vezes em ocasiões pontuais como o aniversário de morte da minha mãe ou quando minha saúde física beirava o colapso, e, nesse caso, por faltar dois meses para agosto e ter todos ossos inteiros, tinha certeza não ser nenhum dos dois.

"O fim do mundo está próximo" Constatei levantando-me da cama sentindo um misto de felicidade com ansiedade. Sabia que esses sentimentos eram ligados, mas nunca gostei deles, porque geralmente quando a ansiedade passa a felicidade se enfraquece e então sempre acontece algo pequeno, mas que naquele momento parece ridiculamente grande, que te põem para baixo. E os dias livres tinham sempre essa sensação. Ainda assim, desci as escadas como se fosse a primeira vez e segui para cozinha agarrando uma xícara extremamente amarela, enquanto ligava a cafeteira, pondo uma capsula de café com maracujá que só tomava quando minha tia não estava perto- outro segredo assegurado por Amélia- e dançava em torno do balcão evitando o tornozelo machucado, num ritmo de uma música que só existia em minha cabeça, mas que parecia fazer todo sentido.

No meio tempo de a cafeteira apitar, enfiei duas fatias de pão encharcados de manteiga na torradeira sentindo minha boca se encher de saliva com o cheiro deleitante da manteiga derretendo, antes de me virar e pegar a xícara, juntando ambos os aromas do pão e café numa festa sinfônica. Agarrei a torrada, mordendo-a sem cerimônia, tomando um gole de café com maracujá em seguida. Tinha gosto de sexta-feira.

Então, uma hora depois do café da manhã terminar, a sensação de euforia tinha se esvaído, minha felicidade se encontrava por um fio e o tédio se aproximava, esmagando-a. O ruim de estar sempre ocupada é que você sempre deseja ter um tempo livre, e, no entanto, nunca sabe o que fazer com essa liberdade. E essa falta de imaginação sempre me deixava mais deprimida, por evidenciar que não conseguia fazer nada original. Até mesmo minhas horas de tédio eram previsíveis, ficava jogada no sofá enquanto apertava despreocupadamente os botões da TV passando por todos canais que claramente eram tão desinteressantes quanto, até dar a volta e começar tudo de novo.

Ergui os olhos em direção a parede que parecia mais cinza que o normal devido ao relógio colorido o qual marcava irritantemente uma da tarde. Pelas minhas contas ainda faltavam seis horas até que minha tinha chegasse, e não precisava arrumar meu quarto antes das cinco, porque arruma-lo correndo trazia alguma adrenalina à minha vida, que agora soava de forma extremamente triste.

-Que ponteiro longo...

Não me recordava desde quando tínhamos aquele relógio, mas me lembrava de ficar assim, atirada no sofá esperando que minha tia voltasse das aulas enquanto analisava os ponteiros, imaginando que faziam algum tipo de dança em conjunto, notando que quando esses ponteiros marcassem às cinco, seria uma dança que me traria adrenalina... Assim como a dança do parque.

Antes que minha mente se perdesse em um fluxo de lembranças problemáticas, me pus de pé resmungando conforme meus pés me guiavam em uma marcha até o andar de cima, do andar de cima para a porta do meu quarto, e da porta do meu quarto até meu guarda-roupa. Não sabia ao certo o que estava fazendo, mas a ideia de passar o resto da tarde me sentindo como

um pássaro engaiolado pela própria escolha não era persuasiva. Agarrei o vestido que aparentava menos abarrotado e o vesti por cima da cabeça após atirar a blusa em qualquer lugar no quarto, assim como a calça do pijama. Corri pelo quarto como um furacão, pegando as primeiras coisas que via pela frente, terminando em frente ao espelho.

Meu cabelo fazia um rabo de cavalo torto, as alças do vestido estavam caídas e as sapatilhas de alguma forma eram vermelhas demais para se usar com um vestido amarelo. Além disso minhas sobrancelhas se mantinham franzidas como se estivesse aborrecida. De alguma forma, me sentia um desastre adorável.

A boneca e o bailarinoOnde histórias criam vida. Descubra agora