Capítulo X - O Lamento de Thurgon

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    O templo de Tsaba'oh ficava ao leste da cidade, não muito longe da praça central. Thurgon se deteve diante da entrada do templo por um instante para observar a construção. O templo ficava em um pódio de vinte metros de largura e cinquenta e quatro de comprimento, possuía uma série de colunas duplas na frente e nos fundos enquanto nas laterais possuía uma série simples totalizando cinquenta e duas colunas todas feitas de calcário, com dez metros de altura cada uma. O rei suspirou, não de admiração como tinha feito outras vezes antes, mas por sentir um profundo pesar. Entrou no templo e se dirigiu diretamente para a cella, local onde ficava a estátua de Tsaba'oh.

    Thurgon depositou sua espada aos pés da estátua depois se sentou com as pernas cruzadas no chão de pedras de basalto. Com lágrimas nos olhos, começou seu lamento diante do deus:

    "Ó Tsaba'oh, senhor da guerra escuta-me. Fora deste templo deveriam achar-se sentados no chão de terra, anciãos filhos de Mannheim lançando pó sobre a cabeça; mulheres, sozinhas em seus aposentos, prostrando-se com a cabeça baixa até ao chão.

    Mas nem mesmo os costumes do pranto podemos observar, pois o inimigo jaz as portas como fogo devorador pronto para nos consumir. Ai de nós! Nem mesmo podemos lamentar.

    Meus olhos se consomem em lágrimas, turbada está a minha alma, e o meu coração se derramou de angústia por causa da calamidade de meu povo; pois foram abatidos nos seios de suas mães meninos e crianças de peito pelas ruas de Staldfold.

    Crianças dizem: Onde há pão e água? Enquanto desfalecem pelas ruas devastadas de cidades que um dia foram meu reino ou ainda quando, nos seios de suas mães exalam a alma.Que posso eu te dizer? A quem te compararei ó Mannheim? A quem te assemelharei, para te consolar, ó Mannheim? Maior e mais belo dos reinos humanos tu fostes, e mais terrível é a tua destruição; tua calamidade é grande como o mar, quem te acudirá?

    Os odiosos filhos das trevas passam pelo caminho batem palmas, assobiam e maneiam a cabeça sobre ti ó Mannheim: É este o reino a qual os homens denominavam a perfeição da formosura, a alegria da terra dos homens?

    Teus inimigos ó Mannheim, abrem contra ti a boca, assobiam e rangem os dentes; dizendo: Devoramo-la; certamente este é o dia que aguardávamos, o achamos e o vimos.

    Vê, ó Tsaba'oh, e considera as coisas que se sucederam nas terras a ti dedicadas! As mulheres, famintas, terão de comer o fruto de si mesmas? As crianças de seu carinho? Ou será morto em teu templo o teu sacerdote?

    Estirados pelas ruas jazem o ancião e o jovem; as virgens e os mancebos foram passados à fio da espada, mortos no dia da calamidade; os elfos fizeram grande matança e não se apiedaram.

    Convocaram de toda terra terrores contra mim, não houve, no dia de sua ira, quem escapasse ou ficasse; até aqueles do meu carinho, meus filhos amados que gerei e criei o meu inimigo os consumiu.

    Até quando ó Tsaba'oh? Esquecer-te-ás de mim para sempre? Primeiro Ellon e agora Argon meu primogênito, será da tua vontade que também meu filho mais moço me seja tomado?

    Ó Tsaba'oh, ouve meu clamor. Chegue a tua presença a minha súplica, inclina os ouvidos à minha petição.

    Pois copiosos males se abatem sobre minha alma, e desfaleço com tamanha aflição que minha vida já se encontra a beira da morte.

    Posso ser contado com os que descem à sepultura; sou como um homem sem força, atirado entre os mortos; como os feridos de morte que jazem na cova, os quais entram no esquecimento e ficam desemparados.

    Fui posto na mais profunda cova, em lugares tenebrosos, nos abismos. Sobre mim pesa a ira dos deuses, tanto das trevas quanto da luz; abatem-me com todas as suas ondas.

    Foram tomados de mim amigos e companheiros de longa data, meu povo passado à fio de espada e minhas cidades arrasadas até os alicerces, a guerra me tragou um filho logo em seu início e agora Argon, meu herdeiro já não existe mais. Ai de mim!

    Ouve minha petição ó Tsaba'oh, filho do Supremo, não escondas de mim o rosto pois tenho sido fiel a Luz e seguido seus preceitos e estatutos, em especial a ti Ó Senhor das Batalhas, tenho conferido honra.

    Agora compreendo a profecia e sei dos desígnios do Supremo, mas se achei mercê ante os teus olhos, eu te peço: Permita que um remanescente do povo seja conservado e que brote um rebento do tronco de Thurgon e que desse fruto venha a ruína dos elfos.

    Permita ainda ó Senhor da Guerra, que as lâminas da minha espada e das espadas de meus homens cobrem um severo pedágio aos filhos das trevas.

    Que possamos vingar-nos de toda destruição que fizeram não somente em nosso reino, mas em todos os reinos dos homens aos quais eles levaram à ruína. Usa-nos como se fossemos tua própria espada, para derramar o sangue dos filhos das trevas, nossos opressores.

Ouve meu clamor e atende a minha súplica. "

    Findada a oração de Thurgon o chão da cella começou a tremer e da estátua de Tsaba'oh soou uma voz poderosa como o som de muitas águas e falou ao rei:

— Ouça-me e não temas, Thurgon filho de Théon. Tua casa me tem sido fiel desde tempos remotos e sei que desde a mocidade tu tens me servido a mim a meus irmãos e mesmo não andando mais entre os homens, nós os deuses da luz, zelamos por vós mesmo à distância. Desde tempos antigos os amamos e esse amor não diminuiu. Teu sofrimento tem um propósito dentro dos desígnios do Supremo cuja vontade nada nem ninguém pode burlar ou escapar. Isso te digo para que se aquiete e se console dentro de ti teu coração. Em épocas futuras esse propósito hás de ser manifesto e todo olho verá. Digo ainda que, porque à Luz se apegou com amor, serás atendido. Porque conhece o nome dos deuses e tens seguido à Luz. De ti virá o rebento e da tua descendência virá alguém que terá grande importância na ruína dos elfos e na queda do Príncipe Maldito. Digo mais ainda: Porque me foste fiel, eu mesmo atenderei ao teu pedido. Pois pediu justiça e eu o Senhor da Guerra valerei por ti. Agora compreende a profecia e sabe que o que está por vir não pode ser mudado, mas serei contigo e com teu exército e o grandioso exército élfico sofrerá em tuas mãos. Então sê forte e corajoso para enfrentar o que virá e o teu galardão junto ao Supremo lhe está esperando. Logo o obterás.

    Uma intensa luz branca tomou conta da cella ao cessar a poderosa voz de Tsaba'oh e Thurgon, tomado de temor, ficou cego e prostrado ao chão como morto durante alguns instantes.

    Quando recobrou a visão, Thurgon se viu caído diante da estátua de Tsaba'oh. Levantou-se lentamente e recolheu a espada junto aos pés do Senhor das Batalhas. Apesar da tristeza, o rei encontrou alivio e consolo meditando nas palavras do deus e elas lhe conferiram um novo ânimo para seguir em frente. O sol estava em seu ponto mais alto no céu quando o rei saiu da cella e se dirigiu a saída do templo, ainda meditando no coração tudo aquilo que ouvira. 

    Nestor e os membros da guarda real estavam em volta do templo. Ao ver o rei, o capitão da guarda se dirigiu rapidamente a seu encontro.

— Meu senhor, creio que ainda não tive tempo de prestar minhas condolências por Argon. Lamento muito – disse o capitão enquanto fazia uma profunda reverência – estamos aqui para impedir que ninguém o incomode durante seu luto.

— Agradeço, Nestor. Mas a hora do luto acabou. E agora vou observá-lo da mesma forma que ordenei ao povo. Durante meus afazeres e enquanto cumpro minhas obrigações. Minha breve estadia no templo, me fez bem. Agora tenho assuntos a tratar. Chame Plínio e venha com ele me encontrar no centro de comando. – respondeu o rei, optando por não falar sobre a manifestação de Tsaba'oh.

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