14 - Cartas II

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Segunda-feira, 31 de julho de 2017

Oi, mãe. É estranho te escrever uma carta, mesmo sabendo que escrevi para o pai dezenas de vezes. Acho que é porque eu já havia me acostumado com a partida dele, mas com a sua, ainda não. Nós conversamos um dia antes, mãe. Não era para a senhora ter morrido.

Preciso me desculpar por não ter feito cena no seu velório. Eu me culpei e ainda me culpo por isso, tudo o que eu queria era ter chorado para provar a minha tristeza para todos, mesmo sabendo que isso não era necessário. Você é minha mãe, não poderia haver uma tristeza maior para um filho. Mas não se preocupe, depois eu chorei. Eu chorei até minha cabeça latejar de dor, até os soluços cortarem minha garganta, até perder o fôlego. Eu ainda choro, mas acho que finalmente todos aqueles anos de terapia fizeram efeito – tardio, mas fizeram. Ah, e por falar nisso, desde que voltei para São Paulo, voltei a me consultar.

Assim que eu e o Jonathan concordamos em vender o apartamento após aquela ligação tão esperada do corretor, eu precisei entrar em casa mais uma vez para retirar minhas coisas. As suas coisas também. Eu chorei ao esvaziar seu armário, ao encontrar sua caixa de cartas que recebia do pai. Eu não tive coragem de ler nenhuma, mas percebi que nossos hábitos eram parecidos, mas diferentemente de mim, você guardava as que recebia, não as que jamais enviaria. Não fiquei muito tempo concentrada nessa caixa, foi difícil demais saber que toda a sua memória física agora está em papéis e objetos inanimados.

Também encontrei todas aquelas fotos de infância e os presentes de dia das mães que fiz ainda na escola, lembranças que não me desfiz, mas trouxe comigo. Suas roupas eu doei, sei que você gostaria que fizesse isso. Fiquei apenas com aquela blusa que elogiei em nossa última conversa e o casaco preto que você levou para Boston quando me visitou e conheceu o Arthur. Depois de tanto revirar aquele lugar, eu finalmente entendi o porquê de a senhora ter trabalhado tanto e ter ficado tão pouco em casa. Não é fácil conviver com as memórias de quem a gente mais amou tendo a certeza de que a pessoa não vai voltar.

Eu e o Jonathan dividimos o valor da venda do apartamento e do seu seguro de vida e ele deu entrada na nova casa dele. Eu vi apenas por foto, mas ela é linda, mãe. É perfeita para os dois e para os filhos que eles tanto desejam. Eu não sei o que será dos dois se todo esse processo der errado; eles já são pais antes mesmo de terem uma criança. Mas enfim, voltando a falar da casa, ela é próxima do centro da cidade, o que aumentou a área de cobertura do Bobiça's. Eles até tem um motoboy contratado pra fazer as entregas e dar um tempo pro Jonathan descansar. Ele merece, tadinho.

Já eu guardei o dinheiro e estou morando de aluguel nos fundos da casa da mãe da Carol. Como sou amiga da filha dela, ela me deu um desconto muito bem-vindo. São só quatro cômodos bem pequenos, quase não coube uma cama de solteiro para Steve no quarto do Arthur, ele inclusive se ofereceu para continuar dormindo no sofá (ele não gosta de dormir comigo, diz que sou espaçosa demais), mas eu não poderia fazer isso com ele mais uma vez, ele merece muito mais que apenas um sofá. Aliás, ele merece até muito mais que uma cama de solteiro. Ele merece o mundo.

É isso. No fim das contas, uma carta para a senhora foi menos difícil do que eu achei. Eu comentei com minha psicóloga sobre as cartas e ela acha que se me fazem bem, eu devo continuar. Então não estranhe se de repente eu aparecer com mais alguma. Eu te amo.


Domingo, 13 de agosto de 2017

Olá. Ainda não sei o porquê te escrevo, mas continuo mesmo assim. Te ver depois de tanto tempo foi tão difícil, e ter que conviver com você, ainda mais. Lembro de ter te falado uma vez que não entendia como entre sete bilhões de pessoas no mundo eu poderia ter me apaixonado justo por você. Não sei quantas pessoas nasceram e quantas morreram desde aquela madrugada de 2014 para poder te afirmar um número com exatidão, mas isso também não importa, porque eu percebi que independentemente dos números quebrados, dentre estes bilhões, ainda é você que eu amo.

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