- Solidariedade e Consequências -

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A escuridão começou a ser dissipada, e com a luz veio o retorno dos sentidos de sua consciência. Sua visão embaçada aos poucos assumiu o estado normal. Não poderia afirmar com propriedade, mas o que estava a alguns metros acima de si pareciam ser toras de madeira sustentando telhas de cerâmica. 

Idarcio estava acordando, a cabeça pulsava de dor, os olhos piscavam para recuperar a visão e sua garganta estava seca. Ele levou as mãos à cabeça e pôde constatar que havia uma pequena toalha úmida em sua testa, retirou o pano macio e com alguns gemidos sentou-se na cama. Quão foi seu espanto quando um animal pulou em seu colo. 

— Mas o que... Filo! — O animalzinho começou a lamber o rosto do amigo repetidas vezes. Idarcio deu alguns risos e ergueu seu companheiro peludo à altura de sua cabeça. Este mostrava-se grandemente contente em ver que seu dono havia despertado. — Ah, estou feliz em ver você também, meu fiel amigo peludo. Não preciso perguntá-lo para saber que ficou aqui comigo durante esses últimos... 

Após alguns segundos, ele notou o atual estado em que estavam suas mãos. Antes consideradas mãos normais, agora possuíam um aspecto esquelético sendo possível a visualização de seus ossos ao longo dos dedos. Idarcio deixou Filo novamente na cama e puxou a manga de sua roupa velha, ele pôde ver que seu punho estava mais fino e provavelmente seus braços também. O andor não se sentiu surpreso por tal consequência, ele sabia que a realização do dito ritual de ressurreição traria efeitos colaterais para si. Um gesto ou uma palavra pronunciada erroneamente poderia trazer problemas não somente para ele mas para o receptor também, que no caso era Adilan. Tendo o ritual supostamente dado certo, as consequências afetaram somente ao realizador do processo, detalhe esse que no fundo não o agradou. 

— Não acredito que eu me submeti a isso. Acabo de me desfazer de alguns bons anos da minha vida, Filo. Anos que nunca mais me pertencerão. — O animal o observou por alguns instantes mas, para não prolongar o momento de tristeza, pulou em seu colo novamente e tornou a lambê-lo. — Está bem, está bem — dizia Idarcio em sorrisos. — Já percebi que você não quer que eu continue lamentando minha escolha.

Com certo esforço ele sentou-se na beira da cama, olhou para a janela aberta e viu que o sol já estava raiando há muitas horas. Perguntou a si mesmo por quanto tempo havia dormido pois a última coisa que se lembrava era de ter caído no chão do quarto; quarto esse que ele julgou não ser o atual em que estava, já que não havia sinal do desacordado Adilan por ali. Para incrementar, pouca certeza ele tinha se o ritual havia dado certo. Pôs-se de pé, mas seu corpo parecia não querer lhe obedecer. Seus músculos estavam fracos, seus movimentos estavam lentos e seus sentidos ainda mostravam-se incertos. Ele esforçou-se para chegar até o banheiro onde, apoiado em uma pia de pedra, retirou sua blusa surrada revelando um tórax magro e pálido. Tirou suas calças rasgadas e, após jogar suas botas para longe, caiu dentro da banheira que mantinha uma água limpa e fria. 

— Ahhh... há quantos meses que eu não sinto o prazer de tomar um banho. Eu não confiaria totalmente em meu olfato neste momento mas o aroma deste sabão está muito agradável. Mmm... eu diria que se trata de lavanda. — Ele pegou a barra de sabão para cheirá-la. Filo apareceu na porta que Idarcio não se preocupou em fechar. — O que? Eu estava cheirando mal? Sem dúvida eu saberia se estivesse. 

O andor permaneceu estirado na banheira de madeira, seu corpo ainda demonstrava escassez de energia. Ele pegou uma bucha e começou a esfregar seus braços, parou algumas vezes para observar suas mãos magras mas optou por evitar fazer reclamações já que a ira e a raiva não eram desvirtudes de sua natureza. Idarcio passou longos minutos lavando-se até retirar o último resquício de sujeira no seu corpo, secou-se com uma toalha e cheirou sua pele para certificar que estava completamente renovado. No entanto, passou por seus pensamentos frenéticos a ideia de que, já que ele e seu fiel amigo estavam na rica cidade do reino, eles deveriam aproveitar para arranjar vestes novas, tendo em vista o estado que suas roupas estavam. 

A Pretensão dos CavaleirosOnde histórias criam vida. Descubra agora