Prólogo • O relojoeiro

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A chuva forte me pegou antes que eu cruzasse o quarteirão. Arrependida de ter subestimado os pequenos pingos em meu rosto assim que saí do supermercado, eu corri para debaixo do toldo amarronzado de uma loja próxima. Minhas roupas estavam completamente encharcadas, meu cabelo pingava e minhas botas faziam um barulho estranho de esponja cheia d'água quando andava. Somente minhas compras estavam a salvo em suas sacolas, enquanto eu havia virado uma grande bagunça molhada.

Eu bufei, checando o céu impacientemente. Havia marcado de estudar com Gregory e precisava estar em casa em mais ou menos dez minutos, mas tudo permanecia completamente nublado e a chuva não dava indícios de trégua, apenas ficava mais forte. O barulho de água caindo violentamente enchia a rua, e as poucas pessoas que perambulavam por ali se embrenharam em abrigos como o meu.

Droga — resmunguei para mim mesma, ajeitando as sacolas nas mãos.

Depois de muitos minutos aborrecidos de espera e nenhuma pausa da chuva, eu apenas resolvi que já estava atrasada de qualquer forma, então deveria relaxar. Resignada e tremendo de frio, eu me encostei nas vidraças do estabelecimento, esperando que minhas costas repousassem na vitrine. Para minha surpresa, contudo, uma porta abriu-se atrás de mim e eu não tive tempo de me agarrar a qualquer coisa para evitar queda. Ao som do tilintar de um pequeno sino, minhas botas escorregaram e eu caí de costas no chão da loja, deixando ruir também todas as compras pedidas por minha mãe.

Latas de refrigerante espalharam-se e os meus limões rolaram pelo piso de madeira como bolas de golfe num campo, atestando meu pequeno desastre. Além disso, minha cabeça latejava pela batida; erguendo-a do chão, eu tateei até encontrar um inchaço doloroso que crescia entre os fios molhados da minha nuca. Massageando suavemente o hematoma em formação, eu grunhi baixinho, sentindo também os cotovelos doloridos pela tentativa vã de amortecer a queda.

— Meu Deus! — Um senhor exclamou de repente, aparecendo dentre as estantes e se apressando até mim enquanto limpava as mãos com um lenço. Seu cabelo era grisalho e seus suspensórios saíram do lugar enquanto ele tentava curvar-se para me ajudar. — Você está bem, minha jovem?

— E-eu estou, sim — respondi depressa, gesticulando gentilmente para que ele não se abaixasse. — Obrigada, estou bem.

Sentindo as bochechas queimarem, eu me recompus e levantei-me do chão com as costas ressentidas, olhando atentamente para o idoso. Sua pele clara tinha muitas rugas profundas, marcas do tempo sobre ele. O lenço balançava em suas mãos trêmulas e sujas de algo oleoso. Ele me observava como se esperasse que eu dissesse algo, e isso me deixou ainda mais acanhada pelo trágico tombo, me obrigando a desviar os olhos. Atentando para o meu entorno, aproveitei para analisar a confusão que havia feito. No fim, apesar dos limões e das latas espalhadas, eu ainda estava agradecida por não ter perdido o leite ou a farinha.

— Olhe a bagunça que fiz... Me desculpe — lamentei, abaixando-me para começar a recolher minhas compras.

— Está tudo bem. — Ele disse e se acocorou para pegar um limão.

— Não, por favor, deixe que eu limpo tudo isso. Não se preocupe, eu...

— Ora, deixe disso! — O senhor interrompeu com um sorriso simpático. — Posso lhe ajudar a pegar alguns limões, ainda não estou tão velho. — E continuou recolhendo as frutas e as jogando na minha sacola, e eu desisti de impedi-lo. — O clima de Baybrook às vezes pode nos atrapalhar bastante, não é?

— Nem me fale — concordei prontamente, também lhe entregando um sorriso.

Um pequeno silêncio se instalou, mas logo a última lata de refrigerante foi apanhada e eu me levantei, oferecendo a mão para ajudar o senhor. Ele, no entanto, recusou gentilmente a oferta com um gesticular sutil e ergueu-se com um suspiro cansado.

O Chaveiro de CoraçõesOnde histórias criam vida. Descubra agora