Epílogo • Déjà-vu

1.4K 173 24
                                    

Não era nenhuma surpresa que tivéssemos sido tão completamente pegos pela chuva. Mamãe nos avisara sobre o tempo assim que saímos, mas não demos ouvidos — a petulância típica dos jovens que não fazem caso de muito, especialmente os apaixonados. Então, ali estávamos, eu e Greg, correndo pelas ruas debaixo de muita água e com sacolas de compras do supermercado, em busca de um abrigo.

Gregory tirou sua jaqueta, a ajeitando em cima de nós como um amparo até que alcançamos o outro lado da rua. Parecia que havíamos finalmente encontrado um lugar para ficar até que a chuva desse uma trégua. Eu ajeitei minhas duas sacolas nas mãos e ele segurava mais três pacotes das compras que mamãe pedira: cenouras, farinha, leite e tudo mais que era preciso para fazer o bolo que Nathan alegara — de forma bastante dramática — ser essencial para sua recuperação.

No entanto, talvez o bolo fosse atrasar um pouco. Eu examinei a rua e a chuva persistente, vendo Gregory analisar bem a situação também. Ele estava sério, mas quando me olhou, despontou numa gargalhada divertida e despreocupada.

— Estamos parecendo gatos molhados. — Ele caçoou, me fazendo abrir um sorriso. — Ainda bem que encontramos isso. — E gesticulou para o toldo amarronzado acima de nós.

Eu levantei o rosto e olhei para cima, observando casualmente a estrutura que Gregory mostrava. Assim que a vi, contudo, lembranças voltaram ligeiras. Eu conhecia bem aquele toldo largo.

Virando rapidamente para trás, eu logo avistei a porta pela qual um dia havia caído, numa situação similar a qual estava agora, mas sem uma companhia. Na vitrine ao lado, tudo parecia igual: o vidro continuava muito lustroso e os mesmos objetos eram exibidos como as melhores peças de um mostruário.

Era a loja do relojoeiro.

Eu mergulhei em lembranças, tomada pelo sentimento de que tudo aquilo já havia acontecido antes. Olhando para dentro das vidraças, avistei meu velho conhecido ajeitando alguns relógios nas prateleiras, encaixando-os minuciosamente entre os outros. No balcão distante dele, a caixa de veludo vermelho continuava lá com suas belas chaves mágicas. Agora, no entanto, além da chave que eu pegara tempos atrás, outra estava faltando. Perguntei-me onde ela estaria e, melhor, com quem estaria; certamente com alguém que aprenderia uma lição, assim como eu.

Virando para ir em direção ao balcão, o relojoeiro passou a vista na vitrine e me notou. Ele parou, arregalando um pouco os olhos de surpresa no primeiro momento, mas logo fazendo suas rugas e rosto simpático relaxarem numa expressão serena e sorridente. Ele acenou para mim e eu o fiz de volta, tomada por tamanha nostalgia que não cabia em mim.

— Está tudo bem? — Gregory indagou assim que me viu acenando embasbacada para dentro da loja, confuso.

Seguindo meu olhar, ele logo deu-se conta da presença do simpático senhor lá dentro, franzindo o cenho em dúvida.

— Esse é...? — questionou vagamente.

Eu sabia que Greg queria perguntar se aquele era quem pensava. Assentindo, eu voltei a olhar para o idoso.

— Sim, é o relojoeiro — respondi baixinho. Uma expressão compreensiva surgiu em seu rosto. — Sr. Garrett, o relojoeiro... ou como gosto de chamar, o chaveiro de corações.

Gregory escutou atentamente, voltando a olhar além da vitrine, para o senhor atrás do balcão. O relojoeiro acenou para meu namorado também, que o fez de volta para ele, muito simpático. O Sr. Garrett sorria, contente e orgulhoso, como se observasse bem o fruto do seu trabalho: ali estava eu dentro de um coração, mas não um que precisara arranjar uma chave para abrir. Respirando fundo, deixei que tudo voltasse como um déjà-vu e se fosse logo em seguida, libertando-me.

— Sabe, o que acha de uma corrida na chuva comigo? — Eu perguntei para Gregory de repente, o pegando de surpresa.

Primeiro, Greg me olhou com uma expressão confusa e desentendida, mas então entendeu o que eu estava fazendo e gargalhou. Eu não queria mais nada com chaves mágicas de corações e seus truques, ainda que tivesse um enorme carinho pelo fabricante delas.

— Hum, se você acha que consegue me alcançar... — Gregory sugeriu, ladino, tocando carinhosamente a ponta do meu nariz com o seu indicador molhado.

Depressa, meu namorado segurou minha mão e me puxou para fora da segurança do velho toldo. Somente tive tempo de dar mais um aceno breve ao Sr. Garrett antes de mergulhar na chuva com Gregory. Nós corremos rua abaixo, sob os pingos assíduos e entre risadas felizes e divertidas, e eu podia jurar que conseguia ouvir, mesmo que distante, a risada contente do relojoeiro misturada ao tic-tac psicodélico dos seus preciosos seus relógios.

O Chaveiro de CoraçõesOnde histórias criam vida. Descubra agora