Saltei da cama apressada, tinha acordado com a sensação de estar me esquecendo de algo importante, olhei as horas no celular, seis e quarenta, fiquei encarando o reflexo suave do amanhecer que infiltrava pela janela até começar a cochilar enquanto tentava lembrar a razão e meu cérebro me despertar em alerta plena quarta feira de manhã quando toda minha vida é noturna.
Pensei se tinha algo marcado com meu chefe, não. Se fosse algo do tipo Gael já ia estar na porta do meu quarto gritando e fazendo ameaças. Minha irmã? Não, ela é do conceito do não faça ao outro o que não desejas para si, ela nunca marca nada para antes do meio-dia. Meus avós? Vovó teria me ligado desde as cinco da manhã até que eu estivesse na porta dela ou o vovô teria vindo pessoalmente verificar se eu estava viva, ele já chamou o porteiro uma vez para abrir a porta quando eu me atrasei por dez minutos e só tinha me demorado no banho. Meu irmão nunca precisa de ajuda, ele prefere reclamar quando eu me atraso como se eu tivesse destruído sua vida em vez de vir atrás de...
- Daniel! – sai da cama.
Tinha me esquecido. Virei motorista dele depois que bati na sua ex-namorada vadia, eles terminaram e como ele não sabe dirigir, eu assumi a chateação de leva-lo de um lado para o outro até ele ter a decência de usar transporte público ou outra namorada. Higiene matinal acompanhado de uma chuveirada rápida e gelada. Um pouco de ração para minha Cruela Cruel. Intermináveis noventa e um segundos no elevador, eu conto toda vez. Bato na porta até ouvir minha avó dizer que está aberta, ela mandou arrancar a campainha por causa de algumas crianças terríveis que gostavam de atormentar os vizinhos.
- A benção vó – eu beijo suas mãos e ela beija minha testa – Dani já está pronto?
- Está tomando café e você vai fazer o mesmo, por que está usando esses saltos nessa hora?
Eu viro uma tartaruga de salto alto ou ando devagar ou me apoio em alguém para andar sem parecer uma bêbada sem equilíbrio.
- Não achei meus chinelos, acho que Cruela sumiu com eles de novo.
- Aquele bicho devia ser adestrado – Daniel diz de seu lugar á mesa.
Olho o prato dele antes de me sentar.
- Você ainda coloca ketchup nos ovos mexidos e bebe achocolatado, não tem direito de opinar na educação de minha gata – falo enquanto passo margarina no pão.
- Não discutam crianças, quer café com leite querida?
- Quero vovó.
Daniel riu. Ok, isso foi um pouco disparatado, mas ele coloca ketchup nos ovos e isso é estranho. Respondemos ao interrogatório de vovó que como sempre ia ligar para papai e fofocar sobre nossa vida, ele por sua vez ia ligar para minha mãe que depois ligaria para brigar com a gente. É um ciclo que não conseguimos quebrar.
Meu irmão terminou seu café bem rápido só para ter o prazer de me apressar, já que ele devia estar no escritório ás oito e faltavam vinte e cinco minutos para. Não tenho pressa, nunca tenho pressa. Estava terminando o café quando meu avô chega com minha irmã, sorrio para ela e viro para Daniel que se levantou com uma expressão endurecida.
- Veja quem achei lá fora.
- Minha querida – vovó recebe Mortícia com um abraço.
Sim, minha irmã se chama Mortícia, mamãe quis homenagear sua falecida mãe quando eu nasci me nomeando Edith – me sinto egoísta quando penso no fato de que se minha avó materna fosse viva quando nasci meu nome seria de alguma coisa tirada de alguma história estranha. Minhas irmãs costumam agradecer por mamãe não ser fã de conto de fadas, apesar dos nomes que receberam serem incomuns, elas preferiam lidar com Mortícia e Lilith a aturar algo como Cinderela e Rapunzel.
Mortis pisca para mim e move os lábios sem produzir som: "Bom dia, Eddie".
"Dia, não te ouvi sair hoje"
"Iago me acordou por que eu 'tava dormindo demais, é o terceiro dia dele na creche".
Meu sobrinho de quatro anos está tão empolgado por estar frequentando uma creche que teve a absurda ousadia de me dizer que não podia abraça-lo em publico, ele era menino grande de escola agora e meninos grandes não abraçam suas tias só a menina de quem gosta. Eu me senti profundamente ofendida pela lógica infantil.
- Nós estamos aqui – vovô resmungou olhando de mim para ela.
Nós nos adaptamos a falar baixo, tão baixo que virou habito longas conversas silenciosas.
- Desculpe – Mortis pediu com sinceridade e oferecendo seu ponto de vista sobre como é deixar o filho na creche e ele parecer desesperado para se livrar dela – Quero dizer, não devia ser como na TV? As crianças chorarem para não ser deixadas pela mãe?
Vovó estava rindo do sofrimento maternal de Mortis quando eu e Daniel saímos, meu irmão começou a relaxar a expressão carrancuda aos poucos. Daniel é meu irmão paterno e por alguma razão ainda não esclarecida ele passou a desprezar minha irmã materna. É irritante vê-los agindo como inimigos e piora quando ousam me colocar no meio de suas birras com "Você é minha irmã, Eddie, deve ficar do meu lado".
Não falo nada, discutir com Daniel sobre seu comportamento imaturo para com minha irmã é um circulo, não me leva á lugar nenhum. E toda vez que toco no assunto Daniel perto de Mortis ganho um revirar de olhos e algum comentário sobre gente egocêntrica vivendo em seus mundinhos defeituosos. Eles se ignoram e enquanto não me usam como desculpas para suas brigas infantis, eu os ignoro.
- Se você continuar calado eu vou te chutar para fora – brigo depois de dirigir metade do caminho em completo silêncio.
- Estou pensando em coisas do trabalho e não gosto que você se distraia enquanto dirige, pode causar um acidente.
Por que me diverte vê-lo apavorado, virei o rosto para ele.
- Você devia ser um mentiroso melhor para quem é considerado um profissional excepcional.
- Eu sou um advogado, não um ator e olhe para frente.
- Você era do teatro amador no ensino médio, pode não ter herdado o talento do pai, mas bem que queria.
- Pelo amor de Deus, olhe para frente.
Olhei para frente, não sou nenhuma suicida, estava dirigindo em velocidade mínima e estava prestando atenção no caminho que fazia.
- Estou olhando para frente, agora me diga por que está com essa cara de quem perdeu uma aposta bilionária.
- Pensava na Fê, em teoria ela ainda é minha secretária e hoje ela volta ao trabalho.
- Relaxa, Fernanda pode ser uma vadia, mas ela é uma profissional sensata, em comparação com a vida emocional. Eu avisei que essa coisa de se envolver com colegas de trabalho terminava mal, chefe com secretária é clichê fictício, na vida real nunca dá certo.
- Eddie 1 x 0 Romantismo – ele debochou – E não fale com tanta propriedade, aposto que deve existir casais clichê no mundo real, eu só não achei o meu clichê ainda.
Ri. Ri tanto que tive que parar o carro. Daniel me olhou com sua melhor expressão entediada enquanto esperava que eu me recuperasse.
- Desculpe, mas isso soou muito engraçado – ele franziu o cenho em confusão – A idéia de você estar procurando seu clichê, é hilário.
- Não ria de mim, maninha, não tenho culpa se você é uma mulher-de-lata. Dirija, estou atrasado.
- Está bem, não zombarei de sua crença nessa ficção que chamam de amor.
- Vou te lembrar desta conversa quando eu tiver o prazer de te consolar por ter se apaixonado pela pessoa errada.
- Isso nunca vai acontecer.
- Nunca digas nunca, mulher-de-lata – acelerei para chegar logo ao seu destino e me livrar dele e seu sorriso convencido.
Eu nunca vou cair nessa tolice de me apaixonar, jamais.

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Piloto Automático
RomanceEdith não tem nada contra o amor, só preza mais pela sua liberdade. Pelo menos é o que ela vive dizendo para justificar seu desapego ao romance. Victor Hugo é um workaholic que se colocou em celibato depois da morte da esposa e do filho. Nenhum del...