33 - Edith

296 39 11
                                    


Eu queria conversar com Mortícia com a mesma facilidade com que conversávamos até... sei lá, semana passada? De repente parecia que eu tinha uma agenda lotada e que meus horários já não coincidiam com os de minha irmã por que nunca estávamos em casa ao mesmo tempo ou por que ela já tinha saído quando eu chegava ou por que ela estava chegando só depois que eu saia.

Do nada minha irmã que era caseiríssima sem paciência para se socializar com pessoas que fossem além do círculo familiar ou funcionários de algum comércio próximo de casa ou colegas da faculdade com quem ela ás vezes era obrigada a se comunicar pela necessidade de realizar tarefas em grupo, do nada, tinha uma vida social tão movimentada que mal parava em casa.

Se essa movimentação toda só afetasse a nossa relação fraterna tudo bem, eu daria o maior apoio de todos para que ela aderisse um pouco dos bons ares da vida noturna e fosse viver além das paredes do apartamento, conhecer pessoas novas todo dia, fazer amigos cuja má influência pudesse enlouquecer mamãe, se apaixonar por cada humano simpático que sorrisse para ela, ter o coração partido uma vez por semana e, todas essas pequenas coisas que uma pessoa com menos de trinta anos já deve ter vivido pelo menos em um ano de suas vidas.

Acontece que isso estava além do comportamento tardio da evolução de uma pessoa, as atitudes de Mortícia estavam afetando o filho dela. Me ligaram da creche para que eu fosse buscar Iago, em qualquer dia da semana eu até que entenderia, mas numa sexta-feira quando Mortícia tem apenas uma aula no meio da tarde e que ela faz online?

Ok, este podia ser um desses acasos malditos que fazem a gente ficar presa numa roda de coincidências bizarras só por que mudou a rotina para dar informações para um estranho perdido de como se ir do ponto A ao ponto B em segurança.

E essa teoria bem aplicada de como a vida da gente vira um caos quando se faz uma boa ação por altruísmo desinteressado foi para o espaço quando chegamos em casa e achei grudado na porta da geladeira um aviso – que se eu tivesse visto antes podia não ter me deixado tão zangada quanto eu estava agora.

Ed,

Vou passar o fim de semana no sítio de uma colega.

Papai vem buscar Iago mais tarde.

Você pega ele na creche para mim?

M.

Sítio de uma colega? Qual colega? Onde fica tal sítio? Que raiva me dá falta de informações úteis. E se alguma coisa acontece e eu preciso falar com ela? Ia fazer isso por telepatia? Celular? Não, a primeira coisa que fiz depois de me ligarem da creche foi ligar para ela só para descobrir que ela desligou o celular – ou estava em algum lugar onde não chegava sinal – e permaneceu assim em todas as vezes que liguei.

Há uma semana ela teria me comunicado que ia sair com três dias de antecedência e passaria todos os momentos disponíveis nos dias seguintes relembrando que estava indo, com quem ia, para onde iam e quanto voltariam. Há uma semana eu teria me estressado por ela parecer uma criança animada com o fim de semana que ia passar na casa dos coleguinhas e os mil planos para todas as coisas que fariam como se o dia tivesse 25 horas.

Está bem, não vou agir como uma irmã mais velha paranóica e protetora com plano absurdo de implantar um rastreador na caçula só para monitorar os passos dela. Em vez disso eu ia agir como a invasiva e intrometida pessoa que não tem vida própria e precisa cuidar da vida dos outros com a desculpa de que estou fazendo o que é melhor para ela.

Quero dizer, depois de uma semana inteira mal vendo minha irmã e sendo incapaz de trocar com ela mais do que alguns textos que nem se pode chamar de conversa, e dela mudando o comportamento do nada e essa viagem repentina com desconhecidos para um lugar mais desconhecido ainda, eu podia ficar preocupada á ponto de ir mexer nas coisas dela, não é?

Piloto AutomáticoOnde histórias criam vida. Descubra agora