5 - Victor Hugo

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Meu dia tinha sido de longe o mais cansativo do ano, ainda que estivéssemos no primeiro semestre ainda e com muita coisa para acontecer, isso por que era sábado e tudo devia ser maçante, mas tudo tinha que ser contrário.

Começou no café da manhã com dona Ângela avisando que tinha contratado um consultor de finanças para avaliar a situação da empresa por que ela estava desconfiada de alguns números, como se eu fosse seu empregado e não dono da empresa ela preferiu fazer tudo pelas minhas costas sem se dar ao trabalho de dizer á quais números ela se referia ou quem era tal consultor, apenas soube que o Consultor tinha encontrado um rombo de alguns milhões em nossas finanças.

Cheguei à empresa com as informações dela martelando na minha cabeça. Um rombo financeiro em que setor? Á quanto tempo que vinha ocorrendo? Quem estava nos roubando? Tentei tirar mais detalhes dela e tudo o que consegui foi um resumo do que ela tinha encontrado por acaso enquanto lia alguns documentos, coisa que ela fazia ás vezes quando aparecia pela empresa.

Dona Ângela e meu pai, Alberto Sandoval tinham se casado como um acordo financeiro, ela era herdeira de um estaleiro que tinha acabado de perder os pais e estava lutando contra as feras gananciosas que eram os homens de negócios e daqueles que viviam no submundo criminoso e viam o estaleiro como uma posição estratégica. Ele era sócio de um empreendimento de transportes marítimos á beira da falência.

Aonde a inexperiente Ângela via só desespero e cerco de pessoas perigosas querendo colocar as garras em sua herança sem ligar muito para os meios com que o faria, o experiente Alberto via uma oportunidade de se reerguer. Ele propôs um casamento de conveniência para ela que aceitou depois de concluir que dos males meu pai era o menor, desse casamento nasci eu, do acordo deles surgiu uma das maiores empresas do ramo da construção naval já existente.

Seu Alberto ensinou dona Ângela a lidar com os negócios, trabalharam juntos até que a Dracar fosse um nome significativo no mercado. Grande parte de minhas lembranças da infância tem a imagem deles á mesa falando de negócios no café da manhã, planejando futuros empreendimentos durante o almoço ou me interrogando sobre o que eu fiz no dia ao jantar, era uma regra fazer as refeições em família.

Há vinte anos eu odiava essas reuniões á mesa, hoje em dia eu sinto falta das expressões de perdido de meu pai sempre que eu mencionava uma pessoa que ele ainda não conhecia ou das trocas de olhares sugestivos entre ele e minha mãe sempre que eu informava que ia dormir na casa de um colega como se mal pudessem esperar para se livrar de mim para ficarem sozinhos, deviam supor que eu não soubesse o que significava os gemidos que vinha da suíte deles quando se trancavam por lá.

Saber que todo o trabalho que os dois construíram juntos estava ameaçado por causa de algum ganancioso que achava que podia nos roubar me enfurecia, saber que dona Ângela tinha tomado para si o cuidado de lidar com o problema era ainda mais irritante. Eu não sou uma criança que precisa ser guiado pela mão, não sou o irresponsável brincando de executivo que ela imagina que eu seja. Depois que seu Alberto morreu, eu me tornei o homem da casa, isso significa que nossa empresa e minha mãe são responsabilidade minha.

Dona Ângela tinha me ordenado que isso ficasse entre nós dois e seu consultor que estava rastreando o dinheiro antes de nos indicar o culpado, ela não queria por algum incidente de ouvidos atrás das paredes, fazer o ladrão se colocar em alerta e sumir com qualquer prova que pode ser arranjando contra ele. Quanto mais ela falava, mais eu tinha a impressão que ela tinha algum suspeito.

- O que está acontecendo? – Fábio me interrogou durante o almoço.

Desde que chegamos no restaurante que ele vinha tagarelando sobre coisas aleatórias, fizemos nosso pedido e assim que o garçom se afastou ele atacou. Olhei ao redor, não havia nenhum rosto conhecido, na verdade o costume de almoçar em restaurante era quase inexistente por isso havia poucos clientes naquela hora.

Contei para ele sobre a suspeita de minha mãe a respeito do desfalque na empresa e a inquérito sigiloso de que ela contratou infelizmente eu não tinha mais detalhes, mas me senti melhor quando meu amigo sugeriu que nós fizéssemos nossa própria investigação interna sem levantar suspeitas. Isso animou meu dia.

E a animação morreu quando minha mãe ligou no inicio da noite dizendo que estava indo para um pronto socorro no Jardim das Rosas, tinha sido assaltada e César estava ferido, nem quis saber o que ela tinha ido fazer naquele lado da cidade, só entrei no carro e dirigi apressado cheio de preocupação.

Minha mãe estava bem, graças á Deus, só um pouco irritada por que tinham demorado em atender o motorista e agora ninguém dizia nada, perguntei para a recepcionista que informou que o paciente tinha acabado de ser levado e levaria um tempo até que tivesse uma resposta oficial sobre o caso, em outras palavras, dona Ângela estava nervosa e com isso beirava a completa grosseria.

Ela contou sobre como tinham sidos seguidos depois de saírem do shopping aonde ela foi se encontrar com algumas conhecidas na chocolataria, seu encontro com as amigas semanal era sempre na loja de chocolates para poderem colocar a conversa em dia, o que era só uma desculpa para comerem doces por que já passavam horas fofocando no grupo da rede social. César achou que podia ser apenas uma coincidência, mas depois de mudar de caminho várias vezes teve certeza que estava sendo seguidos pelos motoqueiros e acabou tentando despistá-los, só para ser prego numa emboscada quando um deles apontou uma arma quando eles cruzavam o Guizo, um bairro perigoso demais, cheio de toda laia de bandidos.

Um dos assaltantes veio com a arma apontada para ela e a mandou descer, mas ela estava apavorada demais para se ativer aos detalhes em sua volta, quando se deu conta o carro já tinha sido levado e havia uma moça ajudando César que tinha sido esfaqueado, então a desconhecida que usava vestido cor de oliva e dirigia um sedã marrom os trouxe para o pronto socorro – os bandidos que deviam ser denunciados ela não lembrava nada além de uma arma e estarem de motos, mas da desconhecida ela conseguia até descrever detalhes da sandália dourada de tiras que estava no banco do carona e como seu celular não parava de tocar.

- Seu motorista já foi atendido, dona? – uma voz estranhamente familiar falou de repente.

Minha mãe sorriu para a mulher enquanto respondia sua pergunta então percebeu que não sabia o nome dela, típico, minha mãe em seus dias normais consegue se distrair até com tinta secando na parede, imagina quando leva um choque emocional? A mulher parece esquecer até como fala, isso quando não concentra toda sua mente brilhante em algo totalmente inútil.

- Edith.

Olhei novamente para a mulher negra de vestido verde que tinha uma mancha escura onde ela devia ter tentado lavar, o tom era sério, sem a vibração de zombaria, mas era a mesma voz chamava meu nome nos sonhos que me fazia levantar com uma ereção infeliz toda madrugada nesta semana, era um inferno acordar duro assombrado por uma voz incorpórea em sonhos das quais eu não conseguia me lembrar. E agora estava na minha presença, a anti-heroína com quem eu fantasiava sem nunca ter esperado um dia ver o rosto.

Comum. Essa foi a primeira coisa que pensei ao ver o rosto dela, não havia nenhum traço que a tornava excepcional ou de beleza fascinante, apesar de estar maquiada, e ainda assim senti a incomoda sensação espalhando por caminhos inconvenientes deixando minha calça como um ornamento justo demais para a ereção involuntária. Nem quando eu era um adolescente meu corpo reagia desse modo.

- Victor Hugo – me apresentei estendendo a mão para ela, toque firme de mãos macias – Minha mãe contou o que fez, muito obrigado por socorrê-la.

- Acaso – ela puxou a mão que eu ainda segurava sem ter notado que fazia papel de idiota, ela disse para minha mãe – Boa sorte para César, adeus.

Ela se virou, mas foi detida por dona Ângela.

- Espere – Edith não se virou, mas virou o rosto de lado olhando sobre o ombro – Me dê seu telefone, darei outro vestido para você como agradecimento.

- Já me agradeceu, duas vezes.

- Por favor, aceite – abafei uma risada com uma tossidela, dona Ângela olhava para Edith como se fosse uma senhora doce e frágil.

- Não.

Apenas não, num tom firme que deixou até minha mãe impressionada, á julgar pela expressão no rosto dela. Dalva, a mulher de César, e uma de suas filhas apareceram pouco depois ficando no pronto socorro, ele já tinha levado os pontos e ia ficar em repouso enquanto recebia transfusão, eu levei minha mãe de volta para casa. 

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